Entrevista: “Nas pandemias, como a da AIDS, direitos humanos e saúde pública estão intrinsecamente ligados” 

Matthew Kavanagh não esquece a imagem de filas de pessoas buscando enterrar seus entes queridos mortos em decorrência da AIDS na Namíbia, quando medicamentos antirretrovirais que salvam vidas já estavam amplamente disponíveis nos Estados Unidos.

Este exemplo de impacto das desigualdades sobre as populações mais vulneráveis é um dos elementos que o levou a se dedicar pessoal e profissionalmente ao HIV/AIDS.

Atualmente, ele é conselheiro especial da Diretora Executiva do UNAIDS, Winnie Byanyima, e diretor do Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias.

Matthew esteve no Brasil recentemente e falou sobre a viabilidade da meta de acabar com a AIDS como ameaça à saúde pública até 2030, a importância do Conselho Global, a contribuição do Brasil para esse conselho e para a resposta ao HIV, a necessidade de fortalecer a participação da sociedade civil e a interseção entre direitos humanos e saúde pública.

Essas reflexões destacam a importância da abordagem multidisciplinar e multisetorial, baseada em direitos, na luta contra o HIV/AIDS e outras pandemias, ressaltando a necessidade de uma resposta global integrada e inclusiva para alcançar a meta até 2030 e prevenir futuras pandemias.

Abaixo, está a entrevista que Matthew concedeu ao UNAIDS Brasil, na Casa da ONU, em Brasília.

UNAIDS Brasil: Pode falar um pouco sobre você, a trajetória profissional e o que você está fazendo agora no UNAIDS?

Matthew Kavanagh: Minha jornada no trabalho com o HIV começou por uma experiência pessoal de testemunhar o sofrimento de amigos e da comunidade em geral. Isso despertou em mim um chamado para a ação, levando-me a abraçar o ativismo como uma ferramenta para a mudança. Inicialmente, meu ativismo se concentrou nos Estados Unidos, mas logo se expandiu para uma escala global. Minha trajetória me levou a passar períodos significativos na África Oriental e Austral, onde testemunhei de perto as gritantes desigualdades no acesso ao tratamento do HIV.

Lembro-me vividamente de uma experiência marcante na Namíbia, onde vi longas filas se formando nos portões dos cemitérios, enquanto as pessoas aguardavam para enterrar seus entes queridos. Era uma cena angustiante, com tantas vidas perdidas diariamente por falta de acesso ao tratamento que, ironicamente, já estava disponível nos Estados Unidos.

Essa experiência motivou-me a dedicar vários anos ao trabalho junto à sociedade civil e em solidariedade com as redes globais de pessoas vivendo com HIV e outras pessoas ativistas. Posteriormente, busquei oportunidades acadêmicas para compreender mais profundamente como o HIV está inserido no contexto do sistema mundial de saúde. Como professor na Universidade de Georgetown, explorei as nuances complexas dessa questão.

Nos últimos dois anos, tive o privilégio de servir como diretor executivo adjunto do UNAIDS, apoiando na reestruturação da organização para enfrentar os desafios emergentes. Atualmente, ocupo o cargo de conselheiro especial da Diretora Executiva do UNAIDS, Winnie Byanyima, e diretor do Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias. Essa posição me permite continuar minha missão de combater as desigualdades e promover uma resposta eficaz às pandemias, enquanto procuro honrar o legado daqueles que perderam suas vidas para o HIV/AIDS.

UB: Na sua opinião, a meta de acabar com a AIDS como uma ameaça à saúde pública até 2030 é alcançável? O que é necessário para chegar lá?

MK: Na minha opinião, esta meta é desafiadora, mas alcançável. Já dispomos de ferramentas notáveis que demonstraram um desempenho incrível. Em muitas partes do mundo, testemunhamos uma combinação eficaz de mobilização comunitária e acesso aos melhores tratamentos disponíveis. Isso resultou em pessoas vivendo com HIV sendo capazes de iniciar e manter o tratamento com sucesso, alcançando a supressão viral.

Essa conquista é impulsionada pela mobilização das comunidades e sociedade civil, que garante que todas as estratégias de prevenção do HIV, incluindo a oferta de profilaxia pré-exposição (PrEP), sejam acessíveis e eficazes para as pessoas. Em comunidades onde essas abordagens são implementadas de forma abrangente, a ameaça do HIV está sendo significativamente reduzida, chegando mesmo a desaparecer.

No entanto, um dos desafios atuais é que, para muitas lideranças e autoridades, o HIV já não é percebido como uma ameaça urgente. Isso ressalta a necessidade contínua de educação e sensibilização sobre a importância de manter o foco e o investimento na luta contra a AIDS.

UN: Em maio de 2023, você esteve no Brasil para o lançamento do Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias, do qual a ministra da Saúde Nísia Trindade é membro-fundadora. Qual é o objetivo do Conselho e qual é o seu status atual?

MK: O objetivo primordial do Conselho Global é reunir lideranças de pensamento de todo o mundo em um fórum que desempenhará três funções fundamentais.

Buscamos aprofundar a compreensão sobre a conexão intrínseca entre desigualdades e pandemias, incluindo não apenas a de HIV/AIDS, mas também outras, como a COVID-19, tuberculose e surtos de doenças contagiosas. Embora essas pandemias possam parecer distintas em sua manifestação, compartilham importantes padrões e implicações relacionadas às desigualdades.

Daí a necessidade de uma abordagem mais holística, que reconheça as ameaças comuns que permeiam todas as pandemias. Portanto, o combate eficaz à AIDS e a preparação para outras pandemias estão intrinsecamente interligados.

Neste sentido, c Conselho Global visa mobilizar recursos e energia para entender melhor como as pandemias se desenvolvem, especialmente como as desigualdades impulsionam sua propagação e impacto.

Finalmente, a partir dessa compreensão aprofundada, o Conselho se propõe a gerar um conjunto de soluções tangíveis e baseadas em evidências, que possam reduzir as desigualdades e fortalecer as respostas às pandemias em sociedades profundamente desiguais.

Um estudo apoiado pelo Conselho revelou uma associação direta entre desigualdade de renda e os resultados das pandemias, demonstrando que países com maiores índices de desigualdade também apresentavam taxas mais elevadas de mortes por HIV e COVID-19.

Essas descobertas destacam a necessidade urgente de compreender melhor como as desigualdades afetam a resposta pandêmica e o que pode ser feito para mitigar esses efeitos prejudiciais.

UB: O Brasil tem sido um exemplo global na resposta ao HIV ao longo dos anos e também faz parte do Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias. Na sua opinião, o que o Brasil traz para o Conselho e para a luta global contra o HIV? Qual diferencial o Brasil representa nesse processo?

MK: De fato, o Brasil é reconhecido globalmente como um exemplo na resposta ao HIV e sua participação no Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias traz uma contribuição única e valiosa para a luta global contra o HIV.

O Brasil, caracterizado por uma das maiores disparidades sociais do mundo, oferece uma visão privilegiada desse fenômeno central. A liderança do país está profundamente envolvida na compreensão das desigualdades como impulsionadoras das pandemias, incluindo o HIV/AIDS, e está implementando políticas inovadoras para enfrentar esses desafios. Sob o atual governo, o país está adotando uma abordagem séria e proativa para lidar com as desigualdades, experimentando diferentes estratégias para avaliar sua eficácia.

Essa abordagem torna o Brasil um ambiente empolgante, onde lideranças nos campos da saúde e dos direitos humanos se destacam. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, é uma figura central no debate sobre as desigualdades como impulsionadoras de pandemias e sobre as estratégias governamentais para combatê-las.

Sua participação no Conselho Global, anunciado oficialmente em Brasília, com a presença de um de seus copresidentes, Sir Michael Marmot, professor de Epidemiologia e Saúde Pública na University College London (UCL) e diretor do Instituto de Equidade em Saúde da UCL, e da diretora-executiva do UNAIDS, Winnie Byanyima, demonstra o compromisso do Brasil em contribuir para soluções globais.

O Conselho Global conta com outros copresidentes de alto perfil, como Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, e Monica Geingos, uma importante liderança feminina da África e ex-Primeira-Dama da Namíbia. Essa diversidade de liderança e expertise proporciona um valioso conjunto de conhecimentos de diferentes setores para impulsionar o avanço das soluções.

O Brasil, por seu lado, se destaca também por seu trabalho inovador e prático no enfrentamento das desigualdades no dia a dia. Enquanto a contribuição acadêmica é fundamental para o entendimento teórico, o Brasil está colocando em prática estratégias eficazes para lidar com as desigualdades.

Poucos governos em todo o mundo estão levando a desigualdade tão a sério quanto o Brasil, o que o torna uma parte essencial e influente do Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias.

UB: O UNAIDS defende que a participação ativa das e da sociedade civil é uma parte crucial de todo esse processo de luta contra as desigualdades. Como garantir que as comunidades desempenhem este papel fundamental para acabar com a AIDS como ameaça à saúde pública até 2030?

MK: Embora muitos reconheçam de forma geral a importância das comunidades na resposta ao HIV/AIDS, é crucial entender que o papel delas não é apenas desejável, mas sim fundamentalmente necessário. Países que estão testemunhando progressos significativos na redução da infecção pelo HIV e nas mortes relacionadas à AIDS compartilham três componentes-chave em sua abordagem.

Em primeiro lugar, as comunidades devem estar verdadeiramente envolvidas nas decisões estratégicas. Elas não devem ser meras espectadoras, mas sim participantes ativas e influentes no processo de tomada de decisão. Quando isso ocorre, as respostas às pandemias, incluindo o HIV/AIDS, tornam-se mais eficazes e inovadoras, pois são informadas pela experiência e conhecimento das comunidades afetadas.

Em segundo lugar, as comunidades desempenham um papel crucial na prestação de serviços diretos. Embora o Estado desempenhe um papel central na saúde pública, é amplamente reconhecido que as organizações comunitárias são muitas vezes mais eficazes em alcançar as populações mais marginalizadas e vulneráveis. Portanto, elas devem ser capacitadas não apenas a participar, mas também a liderar a prestação de serviços e na condução de projetos.

Por fim, as comunidades desempenham um papel essencial no controle social e na prestação de contas do poder público. Elas podem monitorar como os recursos são utilizados, se os serviços são de qualidade e se as estratégias estão atendendo às necessidades das populações-alvo. Este monitoramento liderado pela comunidade é fundamental para garantir que os recursos sejam utilizados de forma eficaz e transparente.

Países bem-sucedidos na resposta ao HIV/AIDS implementam estratégias como o monitoramento liderado pelas comunidades, onde ativistas da comunidade supervisionam diretamente o uso dos recursos públicos e responsabilizam profissionais do governo. Isso não é um obstáculo, mas sim um alicerce para uma resposta eficaz às pandemias.

Portanto, é essencial garantir que esses três elementos – participação comunitária nas decisões estratégicas, prestação de serviços diretos e controle social – sejam integrados de forma eficaz e combinada em todas as respostas às pandemias e na luta contra as desigualdades.

O Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias busca explorar maneiras de tornar esses elementos essenciais e garantir que cada comunidade e governo estejam preparados e capacitados para implementá-los de maneira eficaz, garantindo que todas as doenças e pandemias sejam enfrentadas com sucesso no futuro.

UB: Com a atual Estratégia Global para a AIDS, o UNAIDS trouxe os direitos humanos para o centro na resposta ao HIV/AIDS. Por que falar e agir em direitos humanos é tão importante quanto falar sobre saúde?

MK: Dentro do campo da saúde pública, existe uma corrente de pensamento que erroneamente enxerga os direitos humanos como um obstáculo à eficácia das políticas de saúde. Alguns até defendem o autoritarismo como uma abordagem eficiente para lidar com questões de saúde pública. No entanto, essa visão não se sustenta diante dos fatos.

Quando os direitos individuais são violados e a discriminação é tolerada, as pessoas se sentem excluídas e desconfiadas do sistema de saúde. Mulheres e meninas, por exemplo, deixam de buscar cuidados quando seus direitos não são respeitados. Da mesma forma, as populações LGBTQIA+, em todo o mundo, evitam os serviços de saúde quando são alvo de discriminação.

Em tempos de pandemia, alienar a população que se busca alcançar para conter a propagação da doença é o pior cenário possível. Jonathan Mann, um dos pioneiros na resposta global à AIDS, demonstrou de forma incontestável que os direitos humanos e a saúde pública estão intrinsecamente ligados.

Um estudo recente destacou a relação entre a criminalização da sexualidade LGBTQIA+ e a incidência do HIV. Em países onde essa população é criminalizada, as taxas de infecção por HIV são mais elevadas entre gays e homens que fazem sexo com homens. O medo de perseguição ou discriminação nos serviços de saúde leva esses grupos a evitar ou abandonar o acesso aos cuidados médicos.

Portanto, é fundamental compreender que o respeito aos direitos humanos não só promove a equidade e a justiça social, mas também é essencial para o sucesso das políticas de saúde pública, especialmente em situações de emergência, como em pandemias.

UB: E como isto afeta a resposta ao HIV/AIDS?

MK: No contexto da saúde pública e da resposta ao HIV e à AIDS, é crucial reconhecer que as deficiências na realização de testes, no conhecimento do status viral e na supressão da doença não são exclusivas de qualquer grupo específico, como gays e homens que fazem sexo com homens, mas afetam toda a sociedade.

Essa realidade aponta para uma questão fundamental: as violações dos direitos humanos prejudicam não apenas grupos específicos, mas toda a população.

Essas violações minam não apenas os esforços direcionados à AIDS, mas também corroem a confiança no sistema de saúde pública.

É imperativo que as respostas sejam fundamentadas nos direitos humanos, onde o respeito pelos direitos individuais e a capacidade de reparação em caso de violações são priorizados. Somente assim podemos cultivar a confiança das pessoas no sistema de saúde pública.

A falta de respeito pelos direitos humanos por parte de governos não pode ser ignorada pelo sistema de saúde. A confiança e a participação das pessoas nos serviços de saúde pública dependem da garantia de que seus direitos serão protegidos e respeitados.

Ou seja, para garantir a adesão aos serviços de saúde pública e a eficácia da vigilância em saúde, é essencial fortalecer as estruturas de direitos humanos.

Isso não apenas promove a justiça e a equidade, mas também é fundamental para o sucesso de qualquer iniciativa de saúde pública.

Verified by MonsterInsights