
Os avanços significativos em saúde alcançados na última década na África Central, Oriental, Austral e Ocidental — onde muitos países estavam no caminho para acabar com suas epidemias de AIDS — agora correm o risco de serem revertidos devido ao financiamento inadequado. Uma das principais causas da escassez de recursos é o aumento das dívidas.
Em 2020, quando a pandemia de Covid-19 paralisou economias e sobrecarregou os sistemas de saúde, muitos países africanos recorreram a empréstimos para oferecer serviços emergenciais à população. Mas, quatro anos depois, os termos desses empréstimos estão obrigando os governos a priorizarem o pagamento da dívida em detrimento da saúde e de outros serviços sociais. Cerca de 66% das pessoas vivendo com HIV estão em países que não receberam remissão significativo da dívida após a Covid.
Na África Ocidental e Central, a proporção entre dívida e PIB aumentou 9% entre 2018 e 2023. Países como Burkina Faso, Burundi, República do Congo, Costa do Marfim, Gana, Libéria, Senegal e Serra Leoa registraram aumentos significativos no peso da dívida, que agora atinge pelo menos 15% do PIB.
Países como Angola, Quênia, Maláui, Ruanda, Uganda e Zâmbia, na África Oriental e Austral, a situação é ainda mais crítica, pois governos destinam mais de 50% de suas receitas tributárias para o pagamento de dívidas.
Muitas dessas dívidas são com organizações privadas externos que buscam lucros exorbitantes — por exemplo, um credor da Zâmbia obteria 110% de lucro se o país quitasse sua dívida. Em termos de comparação, empresas altamente lucrativas como a Apple não ultrapassam 48% de margem de lucro.
Apesar de a Zâmbia ter conseguido um acordo de reestruturação com credores oficiais, obtendo certo alívio no ano passado, ainda está prevista a destinação de dois terços do orçamento do país para o pagamento de dívidas nos próximos dois anos, principalmente porque ainda não chegou a um acordo com os credores privados. Na prática, crises já se multiplicam: hospitais estão sem medicamentos e equipamentos essenciais. Sindicatos e ativistas da saúde têm protestado em Lusaca exigindo o cancelamento da dívida.
“Os países estão diante de decisões de vida ou morte”, disse Charles Birungi, que lidera os trabalhos do UNAIDS em políticas macroeconômicas e fiscais. “Pago por hospitais, medicamentos e educação — ou pago a dívida? E se pagar a dívida significar deixar hospitais sem remédios?”
Dois relatórios recentes do UNAIDS focados na África Oriental e Austral e na África Ocidental e Central destacam que o futuro do financiamento da resposta ao HIV em muitos países africanos, assim como da saúde pública e do bem-estar social em geral, depende de medidas inovadoras que garantam que os governos possam investir suas próprias receitas tributárias na população.
“Há avanços na luta contra o HIV nas duas regiões”, afirmou Gail Hurley, especialista em financiamento para o desenvolvimento e uma das autoras dos relatórios. “É claro que houve retrocessos, inclusive relacionados à COVID-19, mas o financiamento externo e o forte compromisso político proporcionaram uma base sólida. Agora os países precisam de uma remissão parcial ou até total da dívida para alcançar as metas globais de saúde.”
A remissão da dívida é especialmente crucial para os países que desejam reduzir a dependência de organismos doadores internacionais para financiar suas respostas ao HIV. Na África Oriental e Austral, por exemplo, a maior parte do financiamento vem de dois organismos doadores: o Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Alívio da AIDS (PEPFAR) e o Fundo Global de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária (também amplamente financiado pelo governo dos EUA). Mas sem alívio da dívida, os países não conseguem investir suas receitas tributárias nos sistemas de saúde.
Com base em amplas consultas com economistas e especialistas em políticas públicas, o UNAIDS propôs que os organismos credores e instituições internacionais renegociem os pagamentos das dívidas, limitando-os a, no máximo, 15% dos orçamentos anuais dos países.
Tal política para os países altamente endividados — como Angola, Burundi, Etiópia, Quênia, Madagascar, Maláui, Moçambique, Sudão do Sul, Tanzânia, Uganda, Zâmbia e Zimbábue — liberaria US$ 41 bilhões por ano para saúde, educação e bem-estar social. Essa estratégia já tem precedente: a Iniciativa para os Países Pobres Muito Endividados (HIPC), em tradução livre para o português, lançada em 1996 pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, aliviou 37 países de mais de US$ 100 bilhões em dívidas.
O UNAIDS também recomenda que os governos aumentem a arrecadação tributária por meio de medidas como o aumento do imposto de renda dos super- ricos, criação de impostos sobre grandes fortunas, redução de isenções fiscais e medidas contrárias à evasão fiscal. A Anistia Internacional estima que a Zâmbia, por exemplo, perde mais de US$ 4,5 bilhões por ano em evasão e elisão fiscal.
Outra opção, não abordada nos relatórios, mas recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), uma das agências copatrocinadoras do UNAIDS, é a criação de um “imposto da saúde” sobre produtos que causam ou agravam problemas de saúde, como bebidas açucaradas, tabaco e álcool.
Em 2023, a OMS pediu que todos os países aumentassem os impostos sobre álcool e bebidas açucaradas (e já havia recomendado impostos sobre o tabaco). Esses recursos poderiam ser reinvestidos nos sistemas de saúde.
No entanto, o UNAIDS alerta que mesmo o aumento da arrecadação não será suficiente para cobrir o déficit de financiamento se não vier acompanhado da redução da dívida.
Sem mudanças rápidas que permitam aos governos africanos investirem em saúde, Birungi teme o que o futuro reserva. “O que acontece se amanhã acordarmos e os doadores tiverem desaparecido?”, questionou. “Voltaremos aos anos de 1980 e 1990, quando as pessoas morriam aos milhares?”
Em 2025, pela primeira vez, o G20, que é um fórum internacional de cooperação econômica, é presidido por uma nação africana: a África do Sul. O presidente Cyril Ramaphosa colocou a dívida como uma das prioridades de ação dos Ministros da Fazenda do G20.
O ex-ministro da Fazenda sul-africano Trevor Manuel foi nomeado para presidir o recém-criado Painel de Especialistas da África no G20, uma comissão internacional de especialistas dedicada a apresentar propostas. O UNAIDS se unirá a outras agências da ONU e especialistas como o ganhador do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz, copresidente do Conselho Global sobre Desigualdade, AIDS e Pandemias apoiado pelo UNAIDS, para defender mecanismos justos de financiamento e resolução da dívida no G20 neste ano.