Quem acompanhou o seriado “Pose” conheceu o papel poderoso que a cultura ballroom teve no acolhimento e na proteção da comunidade LGBTQIAPN+.
A série se tornou um marco, ao explorar temas como identidades de gêneros dissidentes, discriminação racial e desigualdade social, especialmente a relação de pessoas vivendo com HIV/Aids na comunidade ballroom na cidade de Nova Iorque, na época mais crítica da epidemia, entre os anos de 1980 e 1990.
As balls são eventos cheios de energia, onde participantes LGBTQIAPN+ competem em diversas categorias, como melhor rosto, vestido e desfile. A dança, a performance e os figurinos, muitas vezes criados pelas pessoas que competem no evento, são elementos essenciais para alcançar o sucesso em cada “batalha”. Um painel julgador especializado na cena ballroom avalia minuciosamente cada apresentação, adicionando uma camada extra de emoção e competição ao evento.
Um nome de destaque no cenário brasileiro da cultura ballroom é Fênix Zion, pioneira na região Nordeste, veio de Alagoas e atualmente vive no Jardim Romano, Zona Leste da cidade de São Paulo, de onde milita pelos direitos da comunidade LGBTQIAPN+, especialmente nas regiões periféricas, por meio da dança e da cultura.
Fênix vive com HIV e quando descobriu seu estado sorológico teve um acolhimento e suporte imediatos da House of Zion, uma das principais casa de ballroom nacional, com representação no Brasil.
Nesta entrevista, Fênix Zion fala sobre o impacto da cultura ballroom na resposta ao HIV/AIDS e as ações desenvolvidas por esta comunidade no Brasil, incluindo a Ball Anual Vera Verão, que este ano contará com o apoio do UNAIDS e da OIT e é um dos maiores eventos ballroom do Brasil.
UNAIDS Brasil: Poderia nos explicar o que é a comunidade ballroom e como ela se relaciona com o movimento social da Aids?
Fênix Zion: Claro! A comunidade ballroom é um espaço cultural formado por pessoas negras, latinas, LGBTQIAPN+, muitas delas vivendo com HIV/Aids. Surgiu como uma resposta às marginalizações enfrentadas por essas populações. E sua relação com o movimento social da Aids é intrínseca, já que a maioria dos membros da comunidade ballroom é constituída por pessoas LGBTQIAPN+, especialmente homens gays e mulheres trans, transexuais e travestis, que foram duramente afetadas pela epidemia da Aids.
A comunidade ballroom, que surgiu no final dos anos 1960, teve seu início registrado pelo documentário “The Queen”, de 1968, no qual Crystal LaBeija denuncia o racismo nos concursos de beleza para drag queens, culminando na realização do primeiro baile para drags queens negras e latinas e na fundação da primeira casa, a The Royal House of LaBeija.
Nas periferias de Nova Iorque, as houses se tornaram poderosas ferramentas de acolhimento, entretenimento e enaltecimento para pessoas negras, latinas, LGBTQIAPN+ e HIV positivas. Os bailes, conhecidos como “balls“, estruturaram-se como espaços de apoio e proteção, onde são realizadas performances em categorias de beleza, moda, comportamento e dança, celebrando a diversidade e os talentos das pessoas marginalizadas.
É na comunidade ballroom que nasce a dança vogue ou voguing, inventada na década de 1970 por Paris Dupree, e amplamente divulgada pela mídia, mas reconstruída em um lugar de performance radical pelas mulheres trans negras. Essa dança transcreve uma história de resiliência e lutas culturais de populações marginalizadas, remontando às drag balls do século XIX.
Desde os anos 1980, a comunidade ballroom desafia as estruturas sociais, dialogando com movimentos de defesa das populações marginalizadas, como o movimento social da Aids, enfrentando o estigma e lutando pelos direitos das pessoas negras, latinas, periféricas, LGBTQIAPN+ e HIV positivas.
UB: Como os bailes da comunidade ballroom se tornaram espaços importantes para abordar questões relacionadas à prevenção do HIV/Aids e para promover o diálogo sobre esses temas?
FZ: Os bailes da comunidade ballroom não são apenas eventos de entretenimento, mas também são locais de conscientização e educação. Eles proporcionam um ambiente seguro onde as pessoas podem se expressar livremente e onde são realizadas ações de prevenção, como testes de HIV gratuitos e distribuição de preservativos e informações sobre a PrEP (profilaxia pré-exposição ao HIV ).
Além disso, como mencionado, os bailes servem como plataformas para discutir abertamente sobre o HIV/Aids e para desafiar estigmas e preconceitos relacionados a essa doença.
UB: A série “Pose” trouxe à tona muitas dessas questões, incluindo a relação entre a comunidade ballroom e a epidemia da Aids. Como você vê a representação desses temas na mídia?
FZ: A série “Pose” foi um marco importante ao explorar essas questões, dando visibilidade às histórias e experiências da comunidade ballroom durante a epidemia da Aids.
A representação na mídia é crucial para aumentar a conscientização e promover o diálogo sobre questões como identidade de gênero, discriminação racial e saúde pública, incluindo HIV/Aids.
UB: Você poderia nos contar um pouco mais sobre a Latex Ball e seu papel na conscientização sobre o HIV/Aids?
FZ: Certamente! A Latex Ball é um evento anual que tem sido fundamental na promoção da conscientização sobre o HIV/Aids na comunidade ballroom. Criada em 1990 a partir de uma parceria entre a ONG GMHC, Crise de Saúde dos Homens Gays, em tradução livre para o português, e lideranças da ballroom, a Latex Ball oferece uma oportunidade única para engajar milhares de pessoas em conversas sobre saúde sexual e HIV/Aids de forma consciente e respeitosa.
Além disso, serve como uma poderosa intervenção comunitária, proporcionando um espaço para diálogos e reflexões sobre essas questões. É um evento que reúne milhares de pessoas, principalmente aquelas afetadas pela epidemia, e serve como uma plataforma para disseminar informações sobre prevenção, testagem e tratamento.
Atualmente, a Latex Ball evolui em um contexto distinto daquele dos anos 90, mas permanece como uma referência histórica na criação de espaços dentro da ballroom para discutir a questão da Aids. A doença continua a afetar especificamente determinadas populações e é ainda utilizada como uma ferramenta de necropolítica, resultando em fatalidades contínuas.
Nesse sentido, as balls representam uma resposta poderosa ao vírus do HIV e à epidemia da Aids, oferecendo um espaço de conscientização, apoio e resistência.
UB: Como as ações da comunidade ballroom no Brasil estão abordando o tema do HIV/Aids?
FZ: As ações da comunidade ballroom no Brasil estão se concentrando em promover a prevenção, reeducação sexual e conscientização sobre o HIV/Aids. Projetos como o “Articulando”, iniciativa da Coordenaria de IST/Aids de São Paulo em parceria com líderes da comunidade ballroom em São Paulo têm capacitado membros da comunidade local para atuarem como agentes de prevenção e têm proporcionado espaços para discutir abertamente sobre essas questões.
Além disso, iniciativas como a PositHIVa Ball, a Ball For Blood e a Ball Anual Vera Verão têm buscado sensibilizar a população sobre a conscientização acerca do HIV/Aids.
UB: Fale um pouco mais sobre o Vera Verão.
FZ: A Ball Anual Vera Verão, que este ano contará com o apoio do UNAIDS e da OIT, é um dos maiores eventos ballroom do Brasil, em homenagem à icônica personagem interpretada por Jorge Lafond (1952 – 2003), personalidade LGBTQIAPN+ de extrema importância na representação da comunidade preta periférica. Lafond deixou um legado marcante no teatro, na televisão brasileira e na imaginação de todo o país, desafiando estereótipos e promovendo a diversidade na mídia.
O Vera Verão não apenas celebra sua memória, mas também busca explorar as múltiplas realidades vivenciadas por corpos negros, indígenas e dissidentes, incluindo aqueles vivendo com HIV/Aids. Comprometida com os direitos humanos, a edição deste ano, que acontece no dia 30 de março, destaca questões cruciais como raça, classe, gênero, sexualidade, saúde da população preta e o estigma associado ao HIV/Aids.
No dia do baile, vamos ter o apoio também da Coordenadoria de IST/Aids, da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo , com o projeto PrEP. O público presente na Ball Anual Vera Verão poderá fazer testagem rápida gratuita para HIV, sífilis, hepatites B e C, e iniciar o uso da PrEP. Também vai acontecer distribuição de insumos de prevenção, como preservativos e gel lubrificantes.
UB: Por fim, como você vê o futuro da comunidade ballroom em relação à conscientização sobre o HIV/Aids?
FZ: Eu vejo um futuro promissor para a comunidade ballroom no que diz respeito à conscientização sobre o HIV/Aids. Por meio de suas ações afirmativas e de seus espaços de diálogo e celebração, a comunidade ballroom continuará desempenhando um papel fundamental na promoção da conscientização e na luta contra o estigma em torno do HIV/Aids.
Espero que essas iniciativas continuem crescendo e que possamos alcançar uma sociedade mais inclusiva e consciente em relação a essas questões.
UB: Obrigado por compartilhar suas perspectivas conosco, Fênix Zion. Foi um prazer conversar com você sobre esse tema tão relevante.
FZ: O prazer foi meu! Espero que essa entrevista ajude a promover ainda mais a conscientização sobre o HIV/Aids e o papel importante que a comunidade ballroom desempenha nessa luta.