Próximo do lançamento da 2ª temporada do podcast Preto Positivo e para celebrar o Dia Internacional de Combate a Discriminação Racial, o UNAIDS conversou com Raul Nunnes e Emer Conatus, idealizadores e apresentadores do projeto.
Eles falaram um pouco sobre o que os motivou a trabalhar com comunicação via áudio para tratar de um assunto que, mesmo depois de 40 anos de epidemia de AIDS, ainda é tão pouco falado e discutido no Brasil.
UNAIDS Brasil: Quem são Raul Nunnes e Emer Conatus e qual foi a motivação para criação do podcast Preto Positivo?
Raul Nunnes: Sou diretor criativo, produtor executivo, editor, apresentador do “Preto Positivo”. Tenho 33 anos, leonino de Minas Gerais e vivo com HIV há quase sete anos.
Emer Conatus: Eu tenho 29 anos, sou ator, roteirista, diretor criativo e arte-educador. Paulistano, adoro viagens, atividades físicas e eventos ao ar livre. Vivo com HIV há cinco anos.
O “Preto Positivo” surgiu de uma iniciativa global desenvolvida por uma plataforma de áudio que buscava novas vozes e criação de conteúdo de pessoas negras e indígenas. Emer e eu participamos de uma live na qual contamos nossas histórias. Para além da química instantânea e identificação, questionamos por que a maior parte da população morrendo em decorrência da AIDS era negra e, mesmo assim, não tínhamos conteúdos sobre o assunto criados por pessoas negras.
Então, a motivação para a criação do podcast foi compartilhar informações de qualidade sobre saúde pública para pessoas negras e ou periféricas de forma leve e saudável.
UB: Falem um pouco sobre suas jornadas individuais vivendo com HIV. Quais foram os momentos mais desafiadores e os mais gratificantes?
RN: Descobri (a sorologia positiva para o HIV) após o término de uma relação. No início, a aceitação foi difícil. Poucos meses depois, no meu local de trabalho, vivi a primeira situação de sorofobia, quando, após ser questionado, expus a minha sorologia devido à minha queda de rendimento na loja. Na ocasião, meu superior pediu pra eu separar utensílios pessoais dos demais funcionários e “vazou” a informação para equipe. Por outro lado, sempre tive apoio familiar, em especial da minha mãe, que, quando necessário, participava de projetos nos quais eu estava envolvido. Se hoje eu acolho pessoas é por influência dela, pois ela foi a primeira a dizer que ia ficar tudo bem.
O mais desafiador foi me reinventar enquanto profissional. Até hoje, mesmo depois de ter processado a empresa e ganhado a causa, há uma dificuldade enorme em conseguir outro trabalho por ser visto como uma “ameaça”. Sendo assim, desde então, me dediquei a projetos voltados para a arte e comunicação.
EC: Peguei o diagnóstico em um contexto muito delicado da minha vida. Estava desempregado, com contas atrasadas e sob ameaça de despejo. Durante o dia trabalhava vendendo água no semáforo e à noite ensaiava, pois estava prestes a estrear uma peça de teatro. Muitas pessoas dependiam de mim, em casa e em cena.
Era fim de ano, entre Natal e o Ano Novo, e eu construí diálogos imaginários com o HIV nos quais eu dava “fechos” tipo: “Quer acabar comigo, amor? Entra na fila!”. Na época, comecei a registrar reflexões como “A morte me mandou um beijo, mas não veio aqui me beijar”. Sim, eu estava bem dramático nesse momento, principalmente ao descobrir que meu estado já tinha avançado para Aids.
Comecei o tratamento, fiz terapia e sabia que precisava cuidar não só do corpo, mas também da mente. Depois disso, encarei o primeiro ano como uma experiência social. O próximo passo foi criar uma performance artística chamada “Já passou da Hora”, na qual dizia ao público que havia perdido meus remédios e pedia ajuda para procurá-los porque já passava da hora de tomar, uma vez que para pessoas vivendo com HIV, ter que esconder a medicação é uma realidade muito comum.
As coisas foram se encaminhando, aos poucos resolvi os problemas que tinha e ainda consegui ajudar outras pessoas, algumas financeiramente e outras, com informações.
UB: Como vocês lidam com o estigma e a discriminação associados ao HIV?
RN: No início, eu não tinha estrutura psicológica para lidar e acabava deixando de lado porque estava me entendendo enquanto pessoa vivendo com HIV. Hoje, entendo os meus direitos e limites. Então, quando me sinto atravessado por alguém sou capaz de lidar com a situação e de proteger e instruir meus semelhantes.
EC: Acredito que isso é problema da outra pessoa, não meu. Não pego essa responsabilidade pra mim. Sempre fui muito independente e autônomo. Era uma criança que dizia “Você não manda em mim, a vida é minha!”. E continuo dizendo: Minha vingança é mostrar para os preconceituosos que eu estou bem. Na verdade, para quem já teve Aids, eu estou ótimo!
UB: Nos últimos 10 anos, no Brasil, houve um aumento de 19,3% nas infecções por HIV entre a população negra. Em 2013, 44% das infecções estavam nesse grupo, em 2023, o percentual subiu para 63,3%. Na percepção de quem lida com histórias de pessoas negras com HIV, ao que vocês atribuem esse aumento significativo nas infecções entre a população negra?
RN: A falta de acesso à informação de fácil entendimento, objetiva e humana. A falta de acesso ao tratamento e acolhimento, inclusive nos centros de saúde, desde a recepção ao consultório médico, passando pelos enfermeiros e laboratórios. Isso porque o racismo vem antes do diagnóstico.
EC: Falta educação sexual nas escolas e famílias, principalmente em comunidades afastadas dos grandes centros, onde a maior parte da população é negra. Além da marginalização de corpos negros nas diversas esferas sociais como saúde, educação e segurança.
É difícil explicar para pessoas acostumadas com a violência desde pequenas que elas têm direito ao bem-estar. Não adianta falar de saúde para quem mal tem o que comer ou onde dormir. As prioridades são outras! E os discursos precisam estar alinhados com as ações.
UB: O podcast “Preto Positivo” aborda temas como relacionamentos, afeto e trabalho. Como o HIV impacta essas áreas em suas vidas?
RN: Particularmente, passei por situações de sorofobia e quando falo de relacionamentos e afetos, alguns ghostings e afastamentos. Antigamente eu sofria, mas com a terapia e entendimento, passei a valorizar relações saudáveis e recíprocas, compartilho meu tempo com pessoas e projetos que me respeitam, não me resumem a infecção e apoiam a minha luta.
Na área profissional, devido ao processo judicial, por um longo tempo não consegui uma vaga de emprego por ter “sujado” meu nome. Atualmente, trabalho de forma autônoma, e ao longo dos anos tive a oportunidade de palestrar em empresas e pude perceber o quanto o mundo corporativo está despreparado quando o assunto é HIV.
EC: Aprendi a usar o meu diagnóstico como instrumento de seleção natural nas minhas relações, um filtro que afasta quem eu preciso para longe de mim e aproxima quem eu preciso por perto. Fui criado me mudando muitas vezes. Nesses processos de mudanças sempre perdi alguns relacionamentos e ganhei outros. Então, não sinto medo de recomeçar minhas relações do zero. A única relação que não posso perder é a que tenho comigo mesmo.
Como profissional de educação, acreditava que podia falar abertamente sobre minha sorologia entre outros educadores. Quando participei da série “Deu Positivo”, mandei os links de divulgação nos grupos das escolas, onde eram compartilhadas informações de outros trabalhos e projetos. Houve silêncio por dois ou três dias e, quando voltaram a interagir, foi mudando de assunto. Todos visualizaram, mas fingiram não ver, como se a minha pauta não fosse importante. Meu trabalho estava na televisão e mesmo assim eles não queriam saber. Percebi que mesmo entre os professores ainda têm muito a estudar.
A educação é uma área como qualquer outra, com profissionais racistas, lgbtfóbicos, machistas e sorofóbicos. Dos portões para dentro, sou professor, do portão para fora, sou artista e ativista. Aprendi a separar as coisas.
UB: Como vocês avaliam que a comunicação no Brasil trata ou aborda o tema HIV/AIDS?
RN e EC: Quando a gente fala de modo geral, percebemos um avanço significativo. Existem produções de séries, novelas ou até mesmo filmes que abordam o tema. A mídia, por sua vez, tem se prontificado a corrigir o grande erro cometido ao criar matérias e produções sensacionalistas nos anos 80 e 90, mesmo que pontualmente em dezembro.
A internet se tornou uma forte aliada de quem trabalha com produção de conteúdo, com comunicação social, e de instituições, para compartilhar informações, pesquisas e atualizações sobre o tema. Por outro lado, também encontram dificuldade em compartilhar com veículos de maior alcance midiático essas informações fora do mês de conscientização.
UB: Como vocês veem o papel do ativismo na luta contra a discriminação racial e o estigma relacionado ao HIV?
RN e EC: É extremamente importante, mas sem espaço. De forma geral, a sociedade só se mobiliza em datas específicas ou quando um evento toma proporções midiáticas. A ferramenta mais poderosa do ativismo para ambas pautas é a informação compartilhada de forma objetiva de fácil entendimento e acesso.
Quando falamos de raça, precisamos lembrar que somos a segunda maior população negra do mundo, mas que ainda sofre com o racismo estrutural e a necropolítica, que, inclusive, se aplica ao estigma relacionado ao HIV. Então, não é fácil assumir o papel de militante. Mas nenhuma luta foi ganha sem ativismo e pressão popular. A política gira o mundo, então precisamos fazer parte disso para construir o futuro que queremos.
UB: Quais são os passos que a sociedade e as instituições de saúde podem tomar para melhorar a vida das pessoas negras vivendo com HIV?
RN e EC: Informação. Compartilhem o máximo possível ao longo do ano inteiro de forma online e offline. O acolhimento também é um dos mais importantes, pois o racismo vem antes da sorofobia. Estamos falando de direitos humanos básicos que devem ser aplicados de forma igual e sem descriminação.
E, por fim, requalificação, aperfeiçoamento, atualização de conhecimento definem o que precisa ser feito dentro das instituições de saúde. Isso não se limita apenas ao posto de saúde do seu bairro, mas no ingresso na faculdade ou outras instituições.
Ainda vemos, ouvimos e lemos sobre a falta de preparo que as pessoas têm em atender, acolher ou minimamente informar sobre formas de prevenção e tratamento dentro das unidades de saúde. A impressão que dá é que muitos dos profissionais não buscam informação ou qualificação sobre novas tecnologias e isso se aplica a instituições que não investem em ações internas.
UB: No Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, como vocês veem a interseção entre o racismo e o estigma do HIV e o que pode ser feito para promover a igualdade e a compreensão?
É crucial reconhecer a interseção entre o racismo e o estigma do HIV. As comunidades negras e indígenas são desproporcionalmente afetadas pelo vírus, devido a uma série de fatores, que incluem os determinantes sociais da saúde, o racismo estrutural e o estigma e discriminação.
Para promover a igualdade e a compreensão, todos nós podemos investir em programas de prevenção e tratamento do HIV, combater o racismo estrutural, educar e conscientizar sobre o HIV e o racismo e apoiar organizações lideradas por pessoas negras e indígenas.
Ao trabalharmos juntos para combater o racismo e o estigma do HIV, podemos criar um mundo mais justo e equitativo para todas as pessoas.
Preto Positivo é um podcast focado em discutir o universo do HIV e AIDS no Brasil pelo olhar de pessoas negras. Assuntos como saúde, políticas públicas, educação, relacionamentos, sexo, amizades, família, mercado de trabalho são abordados sempre com recortes de classe, raça, sexualidade e gênero.
O episódio de estreia da 2º temporada do podcast Preto Positivo, que terá a participação do UNAIDS Brasil, estará disponível a partir do dia 04 de abril, exclusivamente na plataforma Orelo.