No dia 17 de maio de 1990, a OMS retirou oficialmente a homossexualidade de sua Classificação de Doenças. Em 2005 esta data passou a ser considerado como Dia Internacional contra a Homofobia (IDAHO, pela sua sigla em inglês). Em 2018, a data tornou-se oficialmente o Dia Internacional contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia (IDAHOBIT), reconhecendo o direito de todas as pessoas, independente de orientação sexual, a uma vida digna e com zero discriminação.
Em 2024, o UNAIDS traz a mensagem de que para proteger a saúde de todas as pessoas é preciso proteger os direitos de cada pessoa. Esta mensagem fica ainda mais urgente quando dos deparamos com situações de emergência humanitária, como a que o Rio Grande do Sul está vivendo.
Para falar sobre isso, o UNAIDS traz uma entrevista com Cleonice Araújo, presidenta da Rede Nacional de Travestis e Transsexuais que Vivem e Convivem com HIV e AIDS (RNTTHP). Natural do Mato Grosso do Sul, com ascendência indígena, ela é bacharel em Direito e pós-graduada em Direito Público. Desde 2004 vive em Caxias do Sul (RS) onde tornou-se a primeira vereadora suplente trans, chegando a assumir o mandato por um período. Cleonice ocupou até este ano, 2024, a representação da RNTTHP no Grupo Temático Ampliado das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (GT UNAIDS).
Nesta entrevista, Cleonice fala sobre a importância do IDAHOBIT e os desafios e violências enfrentadas pelas pessoas trans. Aborda, também, o impacto da tragédia climática do Rio Grande do Sul sobre as populações mais vulnerabilizadas, especialmente travestis e pessoas trans.
Como ela diz, “a importância do IDAHOBIT é nos lembrar que a luta contra o estigma e a discriminação deve acontecer todos os dias”.
O Índice de Estigma, lançado em 2019, indicou que 64% das pessoas entrevistadas na época diziam já ter sofrido algum tipo de estigma e discriminação por sua condição de viver com HIV. Do seu ponto de vista, como é que está a situação hoje? Melhorou, piorou?
Quando falamos de estigma e discriminação, a situação das pessoas que vivem com HIV/AIDS hoje, principalmente as travestis e transsexuais, piorou. Quando assumimos nossa sorologia, sentimos imediatamente que aumenta o estigma.
Ainda hoje, várias de nós precisam e dependem da prostituição para sobreviver. E a partir do momento em que você depende de uma profissão já tão estigmatizada, com seus direitos violados, que é tão desrespeitada, e você assume a sorologia, acaba muitas vezes perdendo clientes. E isso é o seu sustento.
Ou seja, ao assumir a sua sorologia acaba sendo ampliada uma lacuna de exclusão dentro da própria família e da sociedade. E essa consequência é muito maior, principalmente, para as travestis e pessoas trans.
E como isto se traduz em violência, tanto institucional, como física?
A violência começa no âmbito mental e se completa no físico, mesmo. A violência mental é especialmente aquela institucional, que começa já na questão da transição e, se sobre ela está incluída uma sorologia positiva, a situação piora alguns degraus. Isso afeta muito o nosso eu, a nossa pessoa, o nosso existir.
Por isso, hoje, para uma travesti ou pessoa trans, assumir a sorologia é muito difícil. Não existe momento ou hora certa. Às vezes em nossos próprios espaços, quando assumimos nossa sorologia, os olhares se voltam para nós.
Hoje é celebrado o Dia Internacional Contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia. Para você, qual é a importância dessa data?
A importância dessa data é lembrar que existimos, que o estigma e discriminação acontecem não só nessa data, e que têm de ser combatidos e eliminados todos os dias.
Por exemplo, quando a gente chega na porta de entrada do sistema de saúde, que é a unidade básica de saúde, e sofremos discriminação, quando não temos acesso aos tratamentos adequados aos nossos corpos, ao nosso existir. E isso acontece todos os dias, em todos os momentos de nossas vidas.
Então, é importante lembrar que o dia 17 de maio é um dia de luta e essa luta tem de ser feita diariamente.
Você vive em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, e o estado passa uma emergência humanitária climática no momento. Como está a situação, especialmente pensando nas pessoas em situação de mais vulnerabilidade, como a população trans e pessoas vivendo com HIV/AIDS?
Nós estamos vivendo um clima de guerra. O que me dói mais ainda é saber que uma irmã, travesti, não recebe acolhimento ou é agredida dentro de um abrigo por ser quem é. Ou quando uma irmã travesti vai até um espaço que distribui cesta básica, não consegue a sua cesta e volta para casa com fome, humilhada. Isso me dói muito.
Nós, da comunidade LGBTQIA+, especialmente travestis e pessoas trans, estamos vivendo isso hoje e é muito dolorido. Para dar uma resposta a esta situação, criamos um comitê para acompanhar os casos de violência contra a comunidade trans dentro do Rio Grande do Sul.
O caso mais recente foi de um homem trans agredido e arrastado. Quando ele chamou a brigada militar, quem acabou preso foi ele, não o agressor. Isto está acontecendo, essa violação de direitos humanos, dentro do estado do Rio Grande do Sul.
Nesse momento, o que mais precisamos é de união, porque a raiva contra nós aumentou mais ainda. A minha aparência, o meu tom de voz, a minha identidade, hoje, estão sendo mais odiados do que antes.
Olhando para o agora e para o futuro, o que pode ser feito de concreto, na tua opinião, para acabar com todas as formas de homofobia, bifobia e transfobia?
O preconceito só será eliminado a partir do momento que a gente começa a ter a consciência de não fazer para as outras pessoas o que não quero para mim.
A gente só vai conseguir ter uma sociedade justa, que não discrimine, não multiplique o preconceito ou qualquer tipo de discriminação, a partir do momento em que temos consciência política, que estudamos e tenhamos abertura para o diálogo. Dessa maneira conseguimos multiplicar essa ideia, de não fazer com as outras pessoas o que não quero que façam comigo.
Alguma mensagem final?
Gostaria de deixar uma mensagem pensando no que estamos vivendo agora no Rio Grande do Sul. O impacto das mudanças climáticas não afeta apenas o estado, mas é um problema de todas as pessoas que têm um compromisso sério com o futuro das novas gerações.
Temos de pensar no meio ambiente como um organismo vivo e tudo o que fazemos, inclusive como movimento social, como sociedade civil organizada, como seres humanos, vai repercutir no futuro. O reflexo de decisões, ou falta de decisões passadas, relacionadas à proteção do clima, está repercutindo hoje dentro do Rio Grande do Sul.
O apelo que faço é de que, como pessoas, empresas, organizações, governos, pensemos no que fazemos: antes de jogar uma gordura no ralo, uma bituca de cigarro no chão, poluir o meio ambiente.
O meio ambiente não é apenas teu. É meu também, do teu filho, da tua mãe, do futuro dos nossos netos. Precisamos pensar no futuro para todas as pessoas.