Por muito tempo a infectologia foi uma especialidade médica distante do cotidiano da maioria das pessoas. A pandemia de COVID-19 mudou repentinamente este panorama, com infectologistas recebendo chamados da imprensa quase diariamente para compartilhar seu conhecimento e orientações. Mas antes disso, outra pandemia, a de HIV/AIDS, mobilizou a atenção desta categoria médica, que se viu frente a um desafio global igualmente urgente.
Em 11 de abril é celebrado o Dia do Infectologista e em reconhecimento à importância da categoria, a equipe do UNAIDS conversou com o Dr. Vinícius Borges, mais conhecido como Doutor Maravilha.
O Dr. Vinícius nasceu em Ijaci, Minas Gerais, e se formou em medicina pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais em 2011. Sua paixão pela infectologia floresceu durante a residência no Hospital das Clínicas da UFMG, levando-o a especialização na área.
Ele trabalhou inicialmente em Belo Horizonte e posteriormente no Tocantins, antes de fincar raízes em São Paulo, onde abriu um consultório particular com foco na comunidade LGBTQIA+. Além de sua prática clínica, o Dr. Vinícius é um ativista incansável pelos direitos da comunidade e pela educação sexual.
Isto o levou a se envolver em projetos comunitários e colaborar com organizações não governamentais para promover a conscientização sobre saúde sexual e prevenção de doenças infecciosas. Ele também é um entusiasta do papel da tecnologia e da internet e redes sociais para se conectar com seus pacientes, informar e mobilizar a comunidade sobre saúde sexual e combater as fake news.
Foi neste contexto que o Dr. Vinícius criou seu alterego virtual, o Doutor Maravilha, que usa as redes sociais para compartilhar informações sobre saúde sexual e prevenção de doenças infecciosas, como HIV/AIDS, sífilis, HPV e outras IST. Para isso, faz uso de uma linguagem de fácil compreensão, com zero discriminação ou julgamentos e voltada especialmente para o público LGBTQIA+, embora acabe alcançando uma audiência maior e mais diversificada.
Nesta entrevista, o Dr. Vinícius fala sobre os desafios da profissão, a importância de naturalizar e tirar o tabu na conversa sobre sexo, especialmente com as juventudes. Aborda, também, o uso da tecnologia e novas plataformas para disseminar informações relevantes para a sociedade e combater as fake news. Finaliza compartilhando uma mensagem para seus colegas infectologistas – mas que, na prática, serve para todas as pessoas atuando na área de saúde.
UNAIDS Brasil: Vamos começar pelo início. Fala para nós, quem é o Dr. Maravilha?
Vinícius Borges: Eu sou o Vinícius Borges, médico infectologista formado pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, com residência no Hospital das Clínicas da UFMG. O Doutor Maravilha é um canal, uma persona criada como um super-herói da população LGBT.
Ele foi criado em 2015, no meu segundo ano da residência de infectologia, justamente porque via uma grande falta de informação destinada especificamente à população LGBT e um completo despreparo dos profissionais de saúde, principalmente da classe médica, para atender a diversidade. Daí, eu criei esse profissional, um médico assumidamente gay, que no caso sou eu, e que estuda essa população e trabalha por políticas públicas voltadas para nós.
UB: Como infectologista, quais são os maiores desafios que você enfrenta ao lidar com a desinformação em torno do HIV/AIDS e como você os supera em sua prática clínica? Quais são os principais mitos e equívocos que você encontra ao discutir HIV/AIDS e outras IST com seus pacientes?
VB: Acredito que os principais desafios estão relacionados ao fato de existirem muitas pessoas acreditando que as IST, o HIV, só acontecem com grupos de risco, como se os grupos de risco ainda existissem. Então, como infectologista, preciso conscientizar que as IST podem acontecer com todo mundo, com qualquer pessoa. Se você transa, você pode se infectar.
Por isso é tão importante conscientizar e trazer informação sobre as IST. E, principalmente, sobre a necessidade de fazer exames regulares e de não deixar que o preconceito paralise a pessoa após ser diagnosticada.
Acho que o maior tabu das IST, do HIV, é o tabu do sexo. Se a gente não tivesse tanto tabu para falar de sexo e sexualidade, essas infecções não trariam para si um tabu que vem em dobro. Ou seja, naturalizando o debate sobre sexo, a gente naturaliza o debate sobre a HIV e IST.
UB: A pandemia de HIV/ADS tem mais de 40 anos. Houve uma grande evolução no aspecto biomédico, mas o estigma e a discriminação seguem muito presentes. A que você atribui este descompasso e como, na sua experiência, afeta as pessoas no seu dia a dia?
VB: É verdade que a ciência evoluiu mais rápido do que a quebra do estigma, mas outras coisas estão evoluindo também. Vejo que as organizações da sociedade civil, os organismos governamentais, agências ligadas à ONU, como o UNAIDS e a OMS, fazem um trabalho incessante, que vem conscientizando as populações.
Mas é verdade que principalmente as informações ainda estão muito concentradas em algumas bolhas de conhecimento voltadas para grupos específicos, então a gente precisa trazer essa informação para todas as pessoas, todos os grupos de pessoas. Precisamos levar educação sexual para as escolas, conscientizar também mais a população hétero.
O conhecimento existe, muitas pessoas já têm acesso, mas ele não é distribuído de uma maneira uniforme. Precisa sair, então, um pouco dessas bolhas e atingir outras pessoas que ainda não foram contempladas.
UB: Os números mostram que as novas infecções por HIV estão crescendo justamente entre a população mais jovem, de 15 a 29 anos, que não viveu o auge da pandemia no Brasil. Como falar sobre HIV/AIDS para esta geração?
VB: Acho que para tratar sobre prevenção com as juventudes, é importante principalmente falar sobre sexo de uma maneira natural. Mesmo que os anos tenham passado e hoje as juventudes tenham acesso amplo às redes sociais, como o TikTok e Instagram, a maior parte das famílias ainda não têm um diálogo aberto e moderno sobre sexo e sexualidade.
Então, a gente precisa naturalizar o debate sobre sexo e falar sobre diversidade, porque existem muitos jovens que se identificam como pessoas LGBT ou com algum tipo de diversidade e, assim, conseguimos acessá-los da melhor maneira.
É importante falar de uma maneira mais leve, sem nenhum tipo de punição e de castigo e sem aquela estratégia do medo: “Se você transar, isso pode acontecer.”; “Se você fizer isso, tal coisa pode acontecer’. Ou seja, procurar falar da maneira mais natural possível e mostrando que o sexo faz parte da vida.
UB: Os novos recursos de prevenção do HIV, como a PrEP e a PEP, estão cada vez mais disponíveis, mas ainda são acessados por uma parcela bem específica da população, composta em sua maioria por homens gays ou que fazem sexo com outros homens, brancos e de classe média. Como fazer para disseminar esta tecnologia para as populações-chave em maior vulnerabilidade?
VB: Sim, a PrEP é uma das principais ferramentas no combate à AIDS. Acredito que um futuro sem AIDS é um futuro com PrEP, uma vez que a cura ou os tratamentos de longo prazo podem levar ainda algum tempo para chegar. Então, o que temos agora é a PrEP, o indetectável igual a intransmissível.
Acho que a gente precisa de mais campanhas para levar as informações para os rincões do país. Trazer essa informação também para os profissionais da atenção primária, e para outras especialidades que não as de infectologistas, farmacêuticos e enfermeiros, para levar essa tecnologia para os interiores do país.
UB: Neste sentido, como você enxerga o futuro da prevenção e do tratamento do HIV/AIDS, especialmente considerando avanços recentes na medicina, e como garantir que estas inovações cheguem às pessoas em maior vulnerabilidade?
VB: Vejo o futuro pela educação sexual, democratização da informação e treinamento dos profissionais de saúde. Hoje, infelizmente ainda não é raro ter pessoas com preconceito em relação à PrEP, acreditando que é um medicamento utilizado para quem quer transar sem camisinha.
Como se o sexo sem preservativo fosse um erro e como se ele já não existisse antes. Isso é uma falácia. A PrEP é justamente para dar uma chance de prevenção para quem ainda não tinha essa prevenção. Então, com educação dos profissionais de saúde e mais informação, a gente consegue avançar.
UB: Como Dr. Maravilha, você é muito atuante nas redes sociais. Como você vê o papel dessas tecnologias na disseminação de informações precisas sobre saúde sexual e no combate às fake news?
VB: Acredito que as redes sociais e os meios de comunicação são importantíssimos na conscientização e educação sexual das pessoas, principalmente porque muitas não têm acesso a esta informação em casa. O que a gente precisa ter é mais regulação dessas redes sociais, mais controle de alguns tipos de postagem, porque a gente ainda vê muita disseminação de ódio e fake news. Não é censura, mas é combater crimes que podem acontecer, como em qualquer outra área da saúde.
Na pandemia de COVID, a gente viu a disseminação de várias desinformações. A gente vê isso acontecendo hoje sobre vacinas e, também, sobre HIV e saúde sexual. Então, a gente precisa que esses profissionais que estão nas redes produzindo informação tenham um certo tipo de conduta, que vá ao encontro das verdades científicas e da ética profissional.
UB: Qual é a importância da colaboração entre profissionais de saúde, organizações comunitárias e governamentais na luta contra o HIV/AIDS e outras IST?
VB: Com certeza, para vencer a AIDS, aliás, para vencer qualquer condição infecciosa, que tenha essa grande conexão com a sociedade, precisamos da união dos governos, das organizações comunitárias, profissionais de saúde e imprensa.
É a partir das diferentes visões que a gente pode tecer os melhores caminhos. Não existe uma alternativa única que vai abarcar todas as populações. Então, só dando espaço e dando voz para os diferentes setores da sociedade que a gente consegue avançar.
É importante saber quem está na ponta, fazendo os tratamentos, utilizando a PrEP, e os profissionais que estão atendendo essas pessoas. E, a partir disso, fazer política pública, né? A política pública tem de ser feita com participação do povo.
UB: Alguma mensagem para seus colegas infectologistas – e demais profissionais da saúde?
VB: A minha mensagem é de parabenizar todas as pessoas que escolheram essa área. A infectologia foi vista, por muito tempo, como uma especialidade menos importante, menos relevante. Lembro que quando escolhi me especializar em infectologia, as pessoas a associavam a uma especialidade menos reconhecida, porque trabalha muito com o SUS, não tem tantos recursos, mas é justamente o contrário.
O principal recurso da infectologia é o recurso humano, que são os nossos pacientes. Então, a gente pode exterminar e erradicar várias infecções, mesmo que sejam difíceis. E a gente consegue curar grande parte delas e as que a gente não cura, as pessoas podem ter uma boa qualidade de vida, como é o caso das pessoas vivendo com a HIV.
A gente tem os pacientes mais incríveis do mundo. Lidamos com condições que afetam intensamente a dinâmica social. Temos as vacinas. Por isso, todas e todos nós temos de sentir orgulho de nossa escolha profissional.
Aliás, obrigado UNAIDS por fazer esse trabalho tão bonito também de conscientização, por ser parceiro de muito tempo e pela honra de participar dessa entrevista.