Em 19 de abril de 1943, foi estabelecido, no Brasil, o Dia do Índio. A data foi criada seguindo algumas das medidas propostas aos países participantes do Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México em abril de 1940. O objetivo das medidas era ressaltar a importância de assegurar o respeito aos direitos dos povos indígenas em todo o continente americano. Em 2022, a data foi renomeada para Dia dos Povos Indígenas.
A mudança se deu a fim de refletir e abarcar a diversidade dos povos originários que habitavam as terras que viriam a formar o Brasil. No entanto, mesmo após 81 anos desde a criação da data, os direitos dos povos indígenas continuam diariamente sendo desrespeitados.
Para abordar essa questão e outras relacionadas, o UNAIDS conversou com Ruan Guajajara, um jovem indígena do povo Guajajara (Tentehar). Ruan é formado em Geografia pela Universidade de Brasília (UnB), com mestrado em Geografia da Saúde, e pesquisa a dinâmica do HIV/AIDS no Distrito Federal. Ele é, também, artista, professor, educador e agente de cultura.
Nesta conversa, Ruan Guajajara discute os desafios enfrentados pelos povos indígenas no Brasil atualmente, o papel da cultura no fortalecimento da identidade, o impacto do HIV/AIDS e outras IST no aumento da vulnerabilidade e como abordar temas como prevenção combinada do HIV, diagnóstico e tratamento com antirretrovirais respeitando a cosmovisão das comunidades indígenas.
UNAIDS Brasil: O que te move como pessoa e membro do povo guajajara?
Ruan Guajajara: O que me move enquanto pessoa e enquanto guajajara é a luta pela vida de nós, povos indígenas, pela defesa e autonomia dos nossos territórios, pela saúde plena das nossas famílias.
Estando em Brasília e pertencendo ao território Morro Branco (Maranhão), assim como tantos outros indígenas na capital, desempenhamos coletivamente um papel fundamental na articulação dos nossos territórios com as instituições, organizações e parceiros, atuando como ponte da base, que é a nossa comunidade, com os demais movimentos.
UB: Neste sentido, o que é ser, e se reconhecer, como indígena no Brasil hoje?
RG: É exercer sua ancestralidade em qualquer espaço que você esteja. É ser uma ponte de acesso e facilitação para quem está em mais vulnerabilidade em nossas comunidades. É atuar ativamente pela vida e pela manutenção da forma de se viver e enxergar o mundo, a cosmovisão da nação Tentehar.
No entanto, é também o enfrentamento diário de políticas e acordos que negociam a terra, a água, a floresta, os rios, as nossas vidas… logo estas, que não são e nunca serão mercadoria para nós, porque são parte de nós.
UB: Quais são os principais desafios enfrentados pelos povos indígenas no Brasil?
RG: Hoje, a mãe de todas as lutas é a demarcação das terras indígenas do Brasil. Não somente a delimitação em si do território, mas a garantia regional de que essas comunidades possam exercer seu modo de vida. A água, os rios, a terra, a floresta, são conectadas em rede a nós, povos indígenas, nosso corpo-território, parte indissociável de quem somos.
Neste contexto, a existência dos povos ainda não está assegurada porque precisamos de um grande movimento nacional de demarcações e defesa dos territórios. Precisamos também de estratégias de enfrentamento às ferramentas que causam destruição e contaminação da terra, provocando eventos climáticos extremos, como os que vemos todos os dias, as secas, incêndios e cheias, aprofundadas pelo atual contexto de mudanças climáticas.
Após mais de 500 anos de colonização, somente agora tivemos, no Brasil, a criação histórica de um Ministério dos Povos Indígenas. É necessário mais tempo e políticas públicas que articulem diversos eixos, como saúde indígena, bioeconomia, demarcação das terras e outras, para resolver a dívida histórica que a atual sociedade brasileira tem para com os povos originários deste país.
UB: Qual é o papel da cultura para impactar positivamente a percepção pública sobre a questão indígena?
RG: A cultura é a continuidade da existência dos povos. É a manutenção da nossa identidade, é a forma de ver o mundo, as rezas, as festas, as ritualísticas da menina moça, do rapaz e do mel. É a língua falada e escrita, com suas diferenças em cada território.
Portanto, o papel da cultura é exercer em si mesmo a ancestralidade do povo, para além do que é visto ou presenciado. É a vida em sua plenitude. E só poderemos sensibilizar o público, ou os demais grupos sociais do país, se eles estiverem abertos a pensar de uma forma diferente, virar a chave, ver a terra e a água como irmãos, e não como mercadoria.
A mística dos povos indígenas envolve e sensibiliza, basta estar junto e presenciar.
UB: Alguns estudos indicam uma forte prevalência de HIV e outras IST nas comunidades indígenas. Por que você acredita que isto ocorre?
RG: Desde 2015, no boletim epidemiológico de HIV/AIDS do país, nós, povos indígenas, apresentamos uma média de mais de 100 parentes infectados por HIV todos os anos. Os dados mostram, entre 2007 e 2023, um total de 1.787 parentes infectados, com os homens mais vulneráveis no processo de infecção.
Em relação às nossas grávidas, os dados revelam muito mais, uma vez que se houvesse pré-natal eficiente e demais ferramentas de atendimento às mães, de forma plena, a infecção não ocorreria. No entanto, entre os anos de 2000 a 2023 houve um número de 545 mães infectadas por HIV.
A questão da disparidade, ausência ou deficiência dos dados sobre HIV e AIDS nas comunidades indígenas dialoga com a necessidade de termos uma saúde específica, voltada para os indígenas.
É preciso que, dentro do subsistema de saúde indígena do Brasil, os profissionais e trabalhadores que atuam no setor estejam preparados e qualificados para a obtenção desses dados, para o preenchimento correto das informações e tenham o tato na ação de acolher o parente que precisa da prevenção e do tratamento às IST.
UB: O que precisa ser feito sobre esta situação?
RG: Uma das possíveis respostas a essa vulnerabilidade apresentada pelos povos indígenas dialoga com a dinâmica espacial das doenças, que afeta populações prioritários e chave para o HIV, incluindo os povos indígenas, as juventudes e as pessoas LGBTQIA+.
Os parentes que se encontram em um contexto de grande mobilidade urbana, de saída e entrada no território, proximidade a centros, cidades e garimpos, bem como a juventude indígena e os jovens que saem dos seus territórios para estudar na cidade, pertencem aos grupos mais vulneráveis para entrarem em contato com as mais diversas infecções sexualmente transmissíveis.
Quando se fala em uma estratégia de prevenção, disgnóstico e tratamento, entendo que é necessário fazer um amplo momento de diálogo nos territórios e nas comunidades urbanas. Precisamos alcançar as lideranças, homens e mulheres, jovens e anciões, envolvendo todos da comunidade em uma conversa que é necessária para a manutenção da vida e da saúde dos povos indígenas.
É preciso falar sobre, mas considerando as especificidades de cada povo e território, realizando um diálogo potente e parceiro das comunidades.
UB: Como reconhecer e garantir o respeito à cosmovisão dos povos indígenas ao se trabalhar temas como prevenção combinada do HIV, diagnóstico e tratamento com antirretrovirais?
RG: Acredito que o primeiro passo é estar em diálogo com as lideranças e pessoas centrais das comunidades, a partir de uma demanda do próprio território. Uma coisa que a ancestralidade pode ensinar é o respeito às tradições e aos mais velhos. Temos, portanto, de trabalhar juntos. Existem muitos temas sensíveis aos povos e devemos atuar com isto, caminhando junto, mas construindo pontes para diálogos que precisam ser feitos.
Logo, é preciso momentos de intercâmbio em saúde, troca de experiência entre povos que enfrentam a pandemia de HIV/AIDS e demais IST, familiarizando nossas comunidades com o assunto. São necessários, também, amplos processos formativos nacionais e regionais para as comunidades, nos territórios que demonstrarem maiores vulnerabilidades e abertura à temática.
Todo processo formativo que envolve nossos povos precisa ser feito com respeito e com uma sabedoria estratégica, caminhando e construindo coletivamente o que precisa ser feito.
Para conhecer um pouco mais das ações desenvolvida pelo joint team do UNAIDS em parceria com populações indígenas, visite UNESCO, OIT e Projeto Àwúre, uma iniciativa realizada conjuntamente pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), OIT e UNICEF, com apoio do UNAIDS.