O mês de março começou com um chamado do UNAIDS, no contexto do Dia de Zero Discriminação, pelo fim de legislações que criminalizam a população LGBTQIA+ e pessoas vivendo com HIV.
Esta é uma realidade infelizmente ainda presente em muitos países do mundo. O Brasil sempre foi exemplo positivo ao disponibilizar acesso gratuito ao diagnóstico, prevenção e tratamento do HIV e ao ter um sistema jurídico que não criminaliza pessoas vivendo com HIV.
Porém, ao fim de março, quando se celebra o Dia Internacional da Visibilidade Trans, um levantamento sobre projetos de lei apresentados nas esferas federal, estadual e municipal, feito pela ONG Minha Criança Trans, indica que esta situação pode estar em risco.
Atualmente, há 24 projetos de lei que potencialmente atentam contra os direitos de acesso à saúde especializada de crianças e adolescentes trans, segundo dados do “Levantamento do Discurso de Ódio em ataque às Crianças e Adolescentes Trans e suas famílias”.
Dos projetos apresentados, 87,5% foram no período entre 29 de janeiro e 15 de março de 2023; 41,6% tramitam no Congresso Nacional; e 58,3% estão nos legislativos estaduais e municipais.
Várias das propostas criminalizam diretamente a atenção médica especializada a crianças e adolescentes trans.
O levantamento feito pela ONG surgiu a partir de um projeto anterior apoiado pela UNESCO e pelo UNAIDS que fez um estudo sobre as vivências de crianças e adolescentes trans no sistema educacional brasileiro.
De acordo com as entrevistas feitas com famílias de crianças e adolescentes trans, 77,5% delas indicaram que suas crianças entre 5 e 17 anos já haviam sido vítimas de bullying transfóbico no ambiente escolar.
“Este primeiro projeto mostrou a importância de um trabalho de formação e conscientização do ambiente escolar para garantir o acolhimento de crianças e adolescentes trans”, explica Thamirys Nunes, coordenadora do levantamento. “Mas, em seguida, percebemos o surgimento de iniciativas legislativas que visam impedir o acesso de crianças e adolescentes trans à atenção de saúde e psicológica fundamentais. Algumas dessas iniciativas tentam, inclusive, penalizar famílias ou responsáveis que buscam apenas apoiar suas crianças trans, que ficam em situação ainda de maior vulnerabilidade, que motivou o novo estudo que fizemos. Como mãe de uma criança trans, isto me deixou extremamente preocupada.”
Embora as iniciativas legislativas mapeadas pelo levantamento ainda estejam em discussão e não tenham sido aprovadas e promulgadas, a quantidade e variedade de proposições geram um clima de incerteza e insegurança para famílias e responsáveis pelas crianças e adolescentes trans e para os serviços de apoio médico e psicológico.
O Brasil é signatário de importantes compromissos internacionais, como a Declaração Política sobre HIV e AIDS, aprovada pelos Estados-membros da ONU em junho de 2021, pela qual os países se comprometem a garantir o amplo acesso a opções de prevenção combinada do HIV, ao diagnóstico e ao tratamento, assim como implantar políticas que combatam as desigualdades e garantam o acesso a estes serviços a todas as pessoas em um contexto livre de estigma e discriminação.
“Existe uma robusta evidência científica sobre os impactos negativos de legislações criminalizadoras no controle da epidemia de HIV ao longo das quatro décadas de resposta global à AIDS”, ressalta Claudia Velasquez, diretora e representante do UNAIDS no Brasil. “O que essas legislações fazem é criar empecilhos a que determinados seguimentos mais vulneráveis da população tenham pleno acesso aos serviços de saúde e acompanhamento psicológico, além de aumentar a carga de estigma e discriminação, o que acaba, na verdade, aumentando risco de infecção pelo HIV. É muito preocupante ver tramitando tantas propostas que acabam criminalizando o cuidado e o acolhimento de jovens trans, indo na contramão de importantes tratados internacionais e marcos legais”, completa
A população trans, no Brasil, é uma das que mais sofre o impacto da epidemia da AIDS, principalmente pela carga de estigma e discriminação, amplificada pelas desigualdades do país.
De acordo com dados do UNAIDS, a prevalência global de infecção pelo HIV chega a 19% entre pessoas trans que, muitas vezes, por falta de acompanhamento e acolhida adequados, inicia seu processo de modificação corporal com métodos clandestinos.
Por fim, isto acaba impactando-as diretamente, aumentando sua vulnerabilidade e expondo-as à exploração sexual, a situações de violência e ao risco aumentado de infeção pelo HIV e outras IST.
“Existe, ainda, uma escassez de dados e indicadores que sejam capazes de visibilizar as especificidades deste tipo de violação de direitos humanos”, acrescenta Ariadne Ribeiro Ferreira, Oficial de Igualdade e Direitos do UNAIDS. “Isto dificulta a formação de políticas públicas capazes de oferecer cuidado a todas as pessoas, promovendo a equidade como um princípio constitucional que deve influenciar as políticas de saúde e educação”, finaliza.