Esse texto faz parte de uma série de publicações preparadas pelo UNAIDS para o lançamento do Relatório Global para AIDS 2022.
Depois de três anos e meio de negociações, construção de coligações e alguma reação contrária, Daan Bauwens ainda não podia acreditar quando, em meados de março de 2022, o parlamento belga votou a favor da descriminalização do trabalho sexual.
“Até a noite em que o parlamento votou ainda havia muita incerteza e tantas manobras legais que eu não podia ter certeza do que iria acontecer”, disse Bauwens, atual diretor da UTSOPI (União de Profissionais do Sexo Organizado para a Independência, na tradução livre para o português), uma organização não governamental belga que defende os direitos de profissionais do sexo.
Ele descreveu a experiência como andar em uma montanha-russa cheia de voltas.
Primeiro, foi preciso garantir a colaboração entre a Violett, uma organização social médica para profissionais do sexo, com a UTSOPI, em 2018, e a contratação de Bauwens como gerente de projeto.
“A ideia era conseguir que profissionais do sexo falassem ativamente por si e iniciassem um movimento nacional”, disse Bauwens.
Foi um processo lento, mas ele sentiu que as pessoas estavam motivadas. E, então, veio a pandemia de COVID-19.
O trabalho parou, as pessoas ficaram em casa e as medidas de isolamento tiveram que ser seguidas.
Ruth (sobrenome ocultado) disse que a COVID-19 atingiu duramente a comunidade de profissionais do sexo. “Estávamos preocupadas com o vírus como todas as outras pessoas, mas o que era pior é que perdemos nosso sustento da noite para o dia”, lamenta. Ruth é uma trabalhadora do sexo há seis anos, vivendo uma vida que ela descreveu como ‘invisível’. “Por causa da lei e do estigma, eu tive que alugar um apartamento pertencente a um cliente, que tinha um preço exagerado, o que esgotou minhas economias durante o lockdown“.
Houve noticiário, no entanto, afirmando que profissionais do sexo estariam desrespeitando as restrições impostas e levando adiante seus negócios. A UTSOPI montou uma ofensiva mostrando como a cobertura da mídia estava sendo estigmatizante. A organização também aproveitou a oportunidade para chamar a atenção sobre as desigualdades em relação aos direitos dessa população.
Quando a mídia fez reportagens sobre profissionais do sexo tendo de entrar em filas de distribuição de comida para alimentar seus filhos, as opiniões começaram a mudar um pouco, explica Daan Bauwens.
Enquanto isso, a UTSOPI fez a sua parte e distribuiu ajuda básica durante o primeiro ano da COVID-19. Também conseguiram levantar recursos, por meio de doações da comunidade, e 35 mil euros, ajudando centenas de profissionais do sexo.
“Isto nos deu legitimidade porque, em primeiro lugar, mostrou que profissionais do sexo não são vítimas indefesas sem representação, e, em segundo lugar, que profissionais do sexo podem falar por si. Em terceiro lugar, são capazes de se organizar e defender uns aos outros”, disse Bauwens.
Sentindo que precisava fazer algo, Ruth começou a ser voluntária da UTSOPI distribuindo pacotes de alimentos a colegas trabalhadoras do sexo no norte de Bruxelas. Ela agora atua como uma profissional de assistência comunitária.
“Ironicamente, a crise e a atenção da mídia trabalharam a nosso favor”, disse Bauwens. O Ministério da Integração Social e da Luta contra a Pobreza doou 500 mil euros a várias organizações belgas no final de 2020 para compensar a falta de ajuda a profissionais do sexo.
Outro estímulo veio quando um membro declarado do Partido Liberal Flamengo, Jacinta de Roeck, pediu à UTSOPI uma nota conceitual sobre o que poderia ser feito para fazer avançar os direitos de profissionais do sexo.
O objetivo para o UTSOPI era simples: descriminalizar o trabalho sexual. Até então, a Bélgica tolerava o trabalho sexual e, apesar de muitas cidades apresentarem distritos de luz vermelha, todos os outros aspectos eram criminalizados. Isso significava que alugar uma casa para uma trabalhadora do sexo ou permitir que ela abrisse uma conta bancária poderia ser passível de processo judicial. “Inevitavelmente, este trabalho não estava regulamentado e as condições de trabalho estavam longe de ser as melhores”, explicou Daan Bauwens. Ele também mencionou que o estigma, o medo de perder o local de trabalho e a falta de clareza encorajavam as pessoas a trabalhar clandestinamente, o que aumentava os riscos à saúde e de sofrer violência.
Quando a nota conceitual foi incluída no acordo da coalizão de setembro de 2020, a UTSOPI celebrou. Os partidos políticos começaram a entrar em contato com a organização para obter conselho especializado.
Nessa época, Bauwens acreditava que algo estava destinado a acontecer. De fato, a verdadeira batalha tinha apenas começado.
No âmbito europeu, houve organizações fazendo advocacy contra a legalização do trabalho sexual, dizendo que poderia ser um instrumento de atração para o tráfico de pessoas.
Daan Bauwens redigiu uma nota política como uma folha de trapaça de lobby e reuniu-se com muitos parlamentares acompanhado de membros da UTSOPI.
“O contra-ataque de vários grupos nunca cessou e devo dizer que muitas reivindicações eram falsas”, disse ele.
“Algumas pessoas chegaram a afirmar que nossa proposta de mudança na lei dificultaria a punição de estupradores que a prostituição de menores se tornaria legal e que o lenocínio seria autorizado. Foi um absurdo e o que mais nos perturbava é que estes grupos estavam se apropriando do sofrimento das pessoas sem pedir sua permissão”, disse Bauwens.
Uma vez que o projeto de lei belga de descriminalização foi apresentado, em 1º de abril, os protestos vieram de todos os lados e se agravaram quando começaram as audiências parlamentares.
Bauwens sentiu que os esforços de descriminalização haviam estagnados e que a lei se tornaria realidade somente daqui a 20 anos.
Mas ele não desistiu tão facilmente e trabalhou arduamente com seus colegas para formar uma coalizão entre 13 organizações de direitos humanos e associações de profissionais do sexo, assim como ONGs que lutam contra o tráfico de pessoas.
“Em última análise, queríamos a mesma coisa. Nossa união tranquilizava as pessoas que estavam assustadas com os possíveis resultados… e nós conseguimos proteger a proposta de lei”, disse ele.
Um mês após o comitê de Justiça ter aprovado o projeto de lei proposto por Vincent Van Quickenborne, ministro da Justiça da Bélgica, o parlamento agendou a votação para o final da noite de 17 de março. Os membros da Coalizão haviam passado muitas horas esperando. Era 1h35 da manhã quando o projeto de lei foi aprovado.
Van Quickenborne disse que se sentiu aliviado e satisfeito. “Depois de um longo processo parlamentar, finalmente conseguimos o resultado pelo qual vínhamos trabalhando por tanto tempo e nos orgulhamos também”, disse o Ministro. “Somos o segundo país do mundo a dar um reconhecimento tão amplo e direitos a profissionais do sexo”.
Bauwens concordou dizendo que era como uma revolução. “Isto não são apenas dois passos adiante, mas 100 pulos adiante.”
Para Ruth, no entanto, é apenas mais um degrau acima em um longo lance de escadas. “Esta é uma nova, mas sabemos que a atenção estará sobre nós. Nesta nova era, serei capaz de entrar em um banco e depositar dinheiro regularmente? As mentalidades das pessoas mudarão?”, questiona, acrescentando que estava apenas começando a perceber as repercussões da nova lei.
A tarefa atual da UTSOPI envolve o ajuste da lei, estabelecendo uma estrutura legal para o trabalho sexual. “Como qualquer outro trabalho, seja na construção, em um restaurante ou em uma escola, existe uma lei trabalhista a ser respeitada e é isso que estamos pedindo”, disse Bauwens.
Ele admite que há maiores riscos no trabalho sexual, mas a imposição de contratos e condições específicas de trabalho será benéfica para todas as pessoas, em sua opinião. Além disso, nenhum empregador poderá deixar de atender às exigências de higiene e às regras mínimas de saúde.
É por isso que a UTSOPI advoga pela descriminalização, temendo que a legalização do trabalho sexual se junte a muitas regulamentações e regras extras, geralmente colocando o trabalho sexual sob o radar. “Este setor precisa ser tratado como qualquer outro”, enfatizou ele.
Para o Ministro da Justiça Belga, a existência do trabalho sexual é uma realidade inegável em todas as sociedades. “Há preocupações legítimas sobre o lado obscuro do trabalho sexual, tal como a exploração e o tráfico humano, mas nossos serviços de segurança e nosso sistema de justiça estão de fato mais bem equipados para combater estes fenômenos quando há uma clara distinção entre atividades legais e ilegais. Espero que muitos outros países sigam nosso exemplo em breve.”
Com a reforma legal em vigor na Bélgica a partir de 1º de junho, a UTSOPI tem tido mais cobertura na mídia e a comunidade está em êxtase. Embora reconhecida, a ONG tem tido dificuldades financeiras, atingida pela diminuição do apoio governamental após a crise da COVID.
Eles esperam que sua campanha de arrecadação de fundos permita que possam continuar seu trabalho com maior urgência para fazer com que o código do trabalho seja apresentado ao parlamento em dezembro de 2022. Independentemente disso, Bauwens continua dedicado à causa.
A reforma legislativa não é fácil, mas é possível. No ano passado, a Bélgica e a Austrália removeram as leis que criminalizam o trabalho sexual. Zimbábue descriminalizou a exposição ao HIV, a não-divulgação e a transmissão.
Vários países removeram leis punitivas que visavam ou afetavam populações-chave. Por exemplo, Angola, Antígua e Barbuda e Seychelles, que descriminalizaram a atividade sexual de pessoas do mesmo sexo, enquanto a Nova Zelândia removeu as restrições de viagens relacionadas ao HIV.
E, mais recentemente, na Índia, a Suprema Corte emitiu instruções sobre a proteção do bem-estar e dos Direitos Fundamentais das trabalhadoras do sexo sob a Constituição Indiana, incluindo o direito à vida e à liberdade, com respeito à dignidade de um indivíduo. A decisão demanda que as trabalhadoras do sexo que tenham sofrido violência sexual tenham pleno acesso a serviços de proteção e apoio, como acontece com a população em geral, e que a posse de preservativos não deve ser tratada como uma questão criminal. Também observa que a polícia e outras autoridades relevantes devem receber treinamento apropriado para garantir que estejam cientes dos direitos das trabalhadoras do sexo e assegurar que sejam respeitados.
Entretanto, apesar dessas reformas encorajadoras, o mundo não está no caminho certo para garantir que menos 10% dos países tenham ambientes legais e políticas punitivas. Em 2021, 135 países criminalizaram explicitamente ou processaram de outra forma a exposição, não revelação ou transmissão do HIV; 24 países criminalizaram e/ou processaram pessoas trans; 133 países criminalizaram pelo menos um dos aspectos do trabalho sexual; e 71 países criminalizaram a atividade sexual consensual entre pessoas do mesmo sexo, de acordo com o UNAIDS.
Além disso, vários países ainda impõem restrições à entrada em seu território de pessoas vivendo com HIV, enquanto outros exigem testes de HIV obrigatórios, por exemplo, para certidões de casamento ou para o exercício de certas profissões. Também é relatada legislação sobre consentimento sexual que prejudica o direito à saúde de adolescentes e sua saúde e direitos sexuais e reprodutivos.
Tais leis e sanções estigmatizam populações já marginalizadas. Isto tem sérias consequências para as pessoas que vivem com ou em risco de infecção pelo HIV, que muitas vezes relutam em procurar testes e tratamento. Como disse Emily Christie, assessora de Direitos Humanos do UNAIDS: “Ao serem criminalizados, os grupos marginalizados estão mais expostos ao risco de ser infectados pelo HIV. A criminalização aumenta a vulnerabilidade”.
A descriminalização salva vidas, e ajuda a avançar na direção do fim da pandemia de AIDS.
Todas as fotos, créditos: UNAIDS/Miguel Soll