O IV Festival Internacional de Cinema LGBTI+ de Brasília exibiu, nesta quinta-feira (30/5), na Aliança Francesa, os curtas-metragens produzidos totalmente por travestis e pessoas trans, incluindo roteiro, fotografia, filmagem, direção, pós-produção e edição. Os curtas foram produtos finais do curso de formação audiovisual “Luz, Câmera, Zero Discriminação”, realizado com 16 travestis, homens e mulheres trans, em 2017, pelo UNAIDS em parceria com o M.A.C. AIDS Fund e apoio da Coordenação de Políticas LGBTI+ da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.
Um dos objetivos desta formação em audiovisual foi mostrar que travestis e pessoas trans podem usar a arte para assumir uma posição de protagonismo e decisão na hora de contar suas próprias histórias, vivências e, acima de tudo, expressar sua criatividade através de suas próprias perspectivas e visões de mundo. A capacitação buscou também construir pontes para a inserção profissional destas pessoas no mercado audiovisual.
Além dos curtas, o público também assistiu ao webdocumentário “Luz, Câmera, Zero Discriminação”, produzido pela Brodagem Filmes—que retrata os bastidores desta formação, os anseios e visões dos participantes e pessoas envolvidas—e ao filme intitulado de “Bandeira”—uma peça de sensibilização cujo roteiro e execução também fizeram parte da formação prática dos curso.
Em debate realizado após a exibição dos filmes, o ativista do movimento trans e estudante de produção em áudio e vídeo, João Henrique Machado, destacou a importância de expressar sua voz por meio do audiovisual. “Normalmente, sempre escutamos coisas do tipo ‘é de verdade o que você tem no meio das pernas? Você operou? Quer dizer que você é mulher?”, conta Machado. “Na verdade, queremos ouvir coisas normais, como qualquer outra pessoa. Somos normais, não somos só corpo, todos os corpos são diferentes. Somos individuais e cada é de um jeito.”
A pedagoga e ativista do movimento trans, que também foi uma das participantes do curso, Janaína Lima, também esteve presente, representanto o grupo. “Rever estes vídeos me traz muitas emoções, e o roteiro que fiz, vejo como se fosse uma criança que botei no mundo para as pessoas verem”, contou Janaína. Talvez eu queira sair dessa identidade e um dia as pessoas possam me perguntar ‘como é trabalhar com cinema ou com pedagogia’ e não só falar como é ser transexual.”
Aos 43 anos, Janaína disse que agora se considera também roteirista. Ela buscou sensibilizar a plateia que participou do cine-debate sobre o estigma e a discriminação. “O HIV é tão colocado na nossa vida [de travesti e mulher trans], é tão comum que não impacta a gente. Temos tentado fugir disso, mas não sei se é possível. Sou uma vítima de uma tentativa de assassinato, quase me tornei uma estatística. Grande maioria das trans são assassinadas”, afirma. “Sou uma pessoa vivendo com HIV há mais de 20 anos. Isso para mim é só um detalhe. Mas a violência que sofro, que é múltipla, às vezes um olhar, alguém cutucando quando entro em um local, na academia, no trabalho, não é diferente. E como travesti, negra, nordestina, que vive com HIV, acumulo todos os estereótipos imagináveis. Quero vencer isso e mostrar que travestis podem chegar até os 95 anos. Chamo atenção para olharmos para tudo isso”, acrescenta.
A cineasta e responsável pela cultura e comunicação da Aliança Francesa, Bárbara Cabral, completou os pontos levantados pelos estudantes do curso: “O desafio é a própria noção de entender que as pessoas não podem ser taxadas só pelo gênero, mas por outras qualidades”, conta. “Além da formação, fiz cinema e jornalismo e não estudei com nenhuma pessoa trans, logo em uma área tão importante para a divulgação dos direitos humanos. Para mim é um absurdo. Não há protagonismo do próprio discurso.” Para ela, os principais desafios são: “entender que as pessoas são mais do que trans, pensar em identidade dos gêneros igualmente e focar na questão da formação, em ter uma política pública para incentivar as pessoas a terem esse discurso.”
O diretor interino do UNAIDS, Cleiton Euzébio de Lima, contou que a ideia do curso de formação em audiovisual para travestis e pessoas trans surgiu em 2015. “Durante uma reunião com algumas pessoas trans, apresentamos a ideia de dar espaço para a representação desta população no audiovisual. Mas a reação foi outra”, relembra. “Ouvimos algo muito importante, que acabou pautando o curso e o resultado do que estamos vendo aqui hoje. Elas nos disseram que a sociedade já estava falando muito sobre as pessoas trans, mas que as pessoas trans não estavam falando de si mesmas e por si mesmas.”
No Brasil, travestis e mulheres trans fazem parte das populações-chave e populações vulneráveis à epidemia de HIV. Dados mais recentes do Ministério da Saúde mostram que a prevalência de HIV nesta população pode chegar a 36%, quase 100 vezes maior do que na população em geral, que é de 0,4%.
“Uso a analogia dos óculos, a ideia de que cada um tem uma perspectiva de vida diferente. Mesmo sendo gay, não posso ver o mundo de uma pessoa trans, mesmo que eu tenha muito interesse e queira apoiar muito a causa, é diferente. Por isso que a questão da representatividade é fundamental”, concluiu Lima.
Cine-debate no CINUSP
Também como parte das celebrações do Mês do Orgulho LGBTI+, os curtas e o webdocumentário retratando os bastidores do curso foram exibidos no CINUSP do Campus Butantã da Universidade de São Paulo (USP). A sessão foi fruto da parceria entre o UNAIDS e o programa USP Diversidade, da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária.
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