Imagine essa situação: uma travesti procura o serviço de saúde precisando de atendimento básico em função de uma dor de cabeça, uma tosse insistente ou mal estar no estômago. Ao chegar na unidade de saúde, ela já encontra obstáculos a partir da entrada, quando o segurança do estabelecimento já lhe pede informações adicionais que não seriam pedidas a outras pessoas. Ao fazer seu cadastro, mesmo com o documento do nome social, ela é tratada pelo nome civil, no gênero masculino e, muitas vezes, ridicularizada diante de todos que ocupam a sala de espera—quando não é ignorada de diversas formas.
Motivadas por preconceito ou desinformação, situações como essa são muito comuns nos serviços de saúde espalhados pelo Brasil. Pensando em reduzir estes casos, e melhorar o atendimento para a população de travestis e transexuais, a prefeitura de Porto Alegre (RS) desenvolveu, em 2014, em parceria com a ONU e organizações locais, o projeto Transdiálogos, que busca capacitar profissionais de serviços de saúde, desde médicos e enfermeiros a profissionais terceirizados de segurança e limpeza, sobre temas como igualdade de gênero e orientação sexual, respeito à diversidade e ética profissional.
A ação é organizada e acompanhada por uma equipe da Coordenação de Infecções Sexualmente Transmissíveis, HIV/AIDS, Hepatites Virais e Tuberculose da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, em parceria com a Igualdade (Associação de Travestis e Transexuais do Estado do Rio Grande do Sul) e apoio do UNAIDS. Desde o início do projeto, mais de 50 Unidades Básicas de aúde na região já receberam a capacitação por meio do projeto.
“Elaboramos uma estratégia em que fosse possível sensibilizar os servidores e profissionais de saúde e, ao mesmo tempo, a partir das próprias contradições ou rotinas equivocadas, colocar essas experiências para uma discussão em grupo”, conta Claudio Nunes, Assessor Técnico da Coordenação de HIV e AIDS de Porto Alegre. “A própria formação profissional passa por cima dessas questões, que são tão importantes para o nosso município.”
Porto Alegre é uma das cidades signatárias da Declaração de Paris, um compromisso assumido por mais de 200 cidades ao redor do mundo pela Aceleração da Resposta ao HIV e o cumprimento das metas de tratamento 90-90-90—que, até 2020, 90% das pessoas vivendo com HIV estejam diagnosticadas; que destas, 90% esteja em tratamento antirretroviral; e que destas, 90% esteja com carga viral indetectável.
Além de contribuir para o alcance das metas de tratamento propostas na Declaração de Paris, o projeto Transdiálogos tem papel fundamental na demonstração prática dos princípios da Agenda para Zero Discriminação nos Serviços de Saúde, também proposta pelo UNAIDS como ponto de partida para garantir acesso de qualidade das populações mais vulneráveis ao HIV aos serviços de saúde. Juntos, os 15 municípios que formam a região metropolitana de Porto Alegre respondem por 10% do número de pessoas vivendo com HIV no Brasil.
“Se a gente não acaba com a epidemia nesta região, a gente não acaba com a epidemia no país”, explica a Diretora do UNAIDS Brasil, Georgiana Braga-Orillard. “O que está faltando é a parte humana. Temos que ter esse olhar humano sobre discriminação e sobre direitos humanos dentro da saúde, porque só assim vamos conseguir quebrar esse ciclo.”
Saiba como funciona o Transdiálogos
Como parte da metodologia do projeto, a atriz Evelyn Ligocki, que interpreta a travesti Beth, procura uma unidade de saúde relatando algum problema de saúde comum, sem muita complexidade. Durante o atendimento, observa de que maneira esse atendimento é feito. Todo tipo de reação é esperada, desde atitudes mais rudes, até um atendimento acolhedor e inclusivo por parte dos profissionais e servidores.
“Em uma das unidades, a atendente me olhou e disse ‘De onde é que isto saiu?’. Assim, como se ela estivesse pensando alto. Tinha uma colega do lado, elas se olharam, e começaram a fofocar uma com a outra”, lembra Evelyn. “Uma enfermeira viu a situação e falou ‘vem cá que eu te atendo’. Quando eu entrei no consultório ela me pediu desculpas pela forma com que as colegas me trataram.”
A participação de uma atriz mulher, cisgênero, fazendo o papel de uma travesti durante a capacitação, não foi por acaso.
“A escolha de uma atriz foi pensada para evitar situações de constrangimento entre os envolvidos e não expor a população trans e travesti à carga emocional gerada por uma situação de preconceito e discriminação”, explica Georgiana.
Depois do episódio envolvendo a atriz, a equipe técnica da Secretaria Municipal de Saúde e uma mulher travesti ou transexual, representando a Associação Igualdade, participam da reunião de capacitação que acontece como parte do trabalho de sensibilização e conscientização. Até o início da discussão, os funcionários envolvidos na atividade desconhecem que a travesti interpretada por Evelyn faz parte dessa atividade de formação. E, ao final, a discussão ganha uma nova perspectiva quando ela revela a todos que é uma atriz.
“A gente deixa que o grupo tome o protagonismo, no sentido de identificar condutas inadequadas ou que podem ser melhor encaminhadas”, reforça Nunes. “A gente arma toda essa encenação, e as pessoas que estão na situação junto com a atriz conseguem observar depois os procedimentos que adotaram e se poderiam ter agido de outra maneira.”
A metodologia empregada no projeto é uma das coisas que mais chamam a atenção, já que trata de um tema sério de maneira diferente das capacitações às quais os funcionários estão acostumados. “Gostei bastante da atividade, foi uma coisa inovadora. Jamais imaginei que a Prefeitura faria algo tão dinâmico como o teatro em uma capacitação. Foi muito produtivo e o diálogo foi muito bom”, conta Denise Mattos, enfermeira na Unidade Básica de Saúde São José, no bairro Partenon, em Porto Alegre.
Os profissionais de saúde que participam da atividade também recebem material de apoio. O guia Garantia de Acesso—Atendimento à Diversidade explica que é fundamental “assumir atitudes que reflitam o respeito aos direitos humanos e à diversidade sexual e de gênero” para fazer uma “diferença positiva” na vida das pessoas.
É comum que muitas travestis e transexuais acabem se afastando dos serviços de saúde após passar por situações constrangedoras ou discriminatórias, o que demonstra a necessidade de se ter equipes preparadas para prestar o atendimento de maneira inclusiva e respeitosa.
“Minhas amigas evitam ao máximo procurar um serviço de saúde porque, na maioria das vezes, elas são destratadas. Elas acham que aquele espaço não é delas, quando é delas sim”, conta Evelyn Mendes, convidada da Associação Igualdade para acompanhar as ações do projeto Transdiálogos. Profissional da área de tecnologia, Evelyn explica que considera “muito legal e interessante” participar de ações voltadas para a saúde, já que, dessa forma, ela pode ter um pouco mais de “propriedade para conversar sobre o tema com outras pessoas trans e travestis”.
“Me incomoda saber que uma amiga não vai procurar assistência porque tem certeza que não será bem tratada. Para mim, é muito importante poder discutir isso, passar adiante essas informações e falar: ‘vai naquele posto que ali o pessoal está treinado e pode te atender melhor’”, conclui Evelyn.