No período em que milhões de pessoas perderam o trabalho, Queen Kennedy conseguiu um novo emprego. Como uma mulher vivendo com HIV na Nigéria, ela respondeu ao chamado para se tornar uma farmacêutica comunitária. Os lockdowns reduziram o acesso ao tratamento e prevenção do HIV. Mas através de uma iniciativa da Comunidade Internacional de Mulheres Vivendo com HIV na África Ocidental, Kennedy e colegas entregam medicamentos para HIV na casa das pessoas. O grupo também conduz sessões de prevenção ao HIV para adolescentes.
“Aceitei fazer este trabalho com honra porque, como mulher vivendo com HIV, sei o que realmente significa ficar sem terapia antirretroviral”, disse Queen Kennedy. “As pessoas podem desenvolver cepas resistentes a medicamentos, cujos efeitos a longo prazo podem ser piores do que a COVID-19”, completa a ativista.
Histórias como esta nos lembram que a COVID-19 não surgiu em um mundo livre de crises de saúde. Hoje, acompanhamos a colisão da COVID-19 com uma pandemia de HIV de 40 anos que já custou 37 milhões de vidas em todo o mundo. Ao mesmo tempo, a maior parte do mundo em desenvolvimento ainda lida com surtos recorrentes e emergentes de doenças que perturbaram vidas e deixaram cicatrizes duradouras.
Em algumas regiões, estas emergências sanitárias se tornaram endêmicas, impulsionadas por vulnerabilidades interligadas, disparidades e desigualdades.
De 24 a 26 de outubro, quase dois anos após o início da pandemia de COVID-19, lideranças globais de saúde de todos os setores se reunirão em Berlim, Alemanha, para a Cúpula Mundial da Saúde. Como aproveitar este momento? Que lições podemos tirar da resposta à COVID-19, HIV, malária, tuberculose, ebola e outras emergências de saúde? E como podemos melhorar os sistemas de saúde em todo o mundo e construir uma rede de saúde global que sirva a todas as pessoas, sem deixar ninguém para trás?
As primeiras respostas ao HIV aconteceram em um contexto de emergência, mas na rápida construção de estruturas, a resposta à AIDS construiu clínicas e laboratórios, expandiu a força de trabalho de saúde e ciência e apoiou inciativas lideradas pela comunidade que têm sido críticas na resposta à COVID-19.
Sabemos agora que estes elementos têm sido imperativos para uma prevenção, preparação e resposta pandêmica mais ampla. Como resultado, o tratamento do HIV que salva vidas está sendo oferecido a 27,5 milhões de pessoas em todo o mundo, resultando em uma redução de 47% nas mortes relacionadas à AIDS desde 2010. A solidariedade global e a responsabilidade compartilhada, a ciência, o ativismo da sociedade civil, a política e o setor privado têm sido fundamentais para alcançar este progresso.
A infraestrutura do HIV tem sido fundamental para tornar a resposta da COVID-19 rápida, decisiva e ágil. Países como a África do Sul, a Índia e a Nigéria reestruturaram e redistribuíram esta capacidade para expandir a vigilância, testagem e as respostas lideradas pela comunidade. Isto foi particularmente importante na Nigéria, onde no início da pandemia de COVID-19 havia apenas quatro laboratórios que tinham capacidade diagnóstica para a COVID-19. Com a reorientação de alguns laboratórios de HIV e tuberculose existentes e através de outras intervenções lideradas pelo país, há agora mais de 150. Uma das principais lições de pandemias anteriores para esta, é construir uma resposta integrada desde o início.
No entanto, esta infraestrutura e capacidade não existem em todos os lugares. E o mais preocupante é que estamos testemunhando desigualdade entre países em termos de acesso às vacinas da COVID-19.
As lições e a solidariedade da resposta à AIDS estão sendo ignoradas, pois as tecnologias de produção de vacinas da COVID-19 e o conhecimento permanecem nas mãos de algumas poucas empresas farmacêuticas e fabricantes de vacinas. Embora mais de 60% da população europeia tenham recebido a vacina, apenas 4% da população africana receberam sua vacina. Nove em cada 10 pessoas em países em desenvolvimento têm poucas probabilidades de receber uma dose este ano.
Precisamos recuperar os benefícios da solidariedade e da interconexão que nos permitirão a recuperação desta pandemia e construção um futuro melhor. Os mundos pandêmicos e pós-pandêmicos precisam de uma humanidade onde cada vida seja valorizada.
As pandemias prosperam com as desigualdades causadas pelas pessoas, e estas desigualdades nós podemos e devemos evitar. Nas intersecções onde a COVID-19 e o HIV colidem, encontramos as pessoas expostas a maior risco e vulneráveis. Elas estão entre as primeiras a perder seu sustento e continuam a enfrentar um acesso desigual à assistência médica e aos serviços sociais. A desigualdade no acesso à tecnologia aprofundou ainda mais o impacto da COVID-19. Criou uma divisão de quem poderia continuar a trabalhar e receber por isso e de quem poderia continuar seus estudos.
O registro para vacinação sobre plataformas digitais excluiu as pessoas que não têm acesso a essas plataformas. A realização da vacinação através de espaços determinados tem o potencial de deixar de fora as comunidades marginalizadas não atendidas pelo sistema de saúde tradicional, além de aprofundar a desigualdade no acesso. Para acabar com a AIDS e a COVID-19, precisamos acabar com as desigualdades, o que requer uma abordagem de toda a sociedade— onde as comunidades estão no centro da prevenção, da preparação e da resposta.
O ritmo de propagação da COVID-19 destaca a necessidade de uma resposta urgente. A ebola rapidamente sobrecarregou os sistemas de saúde dos países afetados na África Ocidental, mas a capacidade de resposta em todos os países foi perdida depois disso. Com a COVID-19 e a resposta contínua ao HIV, o foco deve ser o aproveitamento das capacidades locais e regionais e o fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde para prevenir, detectar e responder, não apenas a uma doença emergente, mas a qualquer outra.
Se fizermos isso da forma correta, muito será ganho. Se errarmos, o déficit global de saúde aumenta.
Como lideranças globais, devemos várias coisas à próxima geração. Devemos ter sistemas adaptáveis capazes de lidar com os aspectos multidimensionais da prevenção e preparação para pandemias. Devemos ter serviços de saúde abrangentes e integrados através de uma cobertura de saúde universal para garantir o acesso equitativo e acessível à saúde por todas as pessoas. Devemos à próxima geração verdadeiras parcerias e colaboração globais para melhor compartilhamento de dados e conhecimentos. Devemos análises locais e globais mais rápidas para informar a inovação e a tomada de decisões. E devemos respostas de saúde pública a curto prazo e abordagens de desenvolvimento a mais longo prazo que fator de vulnerabilidades locais.
Em última instância, precisamos de uma resposta cooperação coordenada de saúde pública e desenvolvimento que nos permita acabar com as duas atuais pandemias colidentes e estar melhor preparados para a próxima.