Sair do seu país, deixar para trás família, amizades, toda uma história de vida. Lutar pela vida em uma nova realidade, muitas vezes hostil. Reconstruir laços e ajudar quem vem depois. Tudo isso requer uma grande dose de valentia – e foi esta força interior que impulsionou Nilsa Hernandez, 62 anos, a deixar a Venezuela para conseguir, no Brasil, o tratamento para o HIV que lhe salvaria a vida. Nesse caminho, ela fundou um grupo de voluntariado chamado Valientes por la Vida (Valentes pela Vida, na tradução livre para o português), para apoiar migrantes da Venezuela vivendo com HIV/AIDS.
Nilsa fazia bicos como verdureira na Venezuela para complementar a renda familiar e cuidava dos filhos, netos e bisnetos. Descobriu que vivia com HIV quando seu ex-marido, com quem já não vivia, morreu por complicações decorrentes da AIDS. “Fiz o teste e recebi o diagnóstico positivo para HIV. Isso foi 16 anos atrás e meu mundo caiu. Fiquei muito assustada porque não sabia nada sobre o assunto e passei muito mal, mesmo com a médica me explicando que se eu me tratasse corretamente poderia ter uma vida normal.”
Ela tratou de iniciar o acompanhamento médico e com o acesso à terapia antirretroviral (TARV), sua carga carga viral baixou ao ponto de ficar indetectável e, portanto, intransmissível. “Cuidava de mim direitinho, tomava meus comprimidos regularmente, tinha uma vida normal e procurava me informar sobre tudo que se relacionava aos HIV. Virei uma espécie de ativista”.
Tudo mudou quando a crise político-econômica se instalou na Venezuela. Os serviços de saúde foram duramente afetados e as pessoas vivendo com HIV e AIDS foram diretamente atingidas, ao perderem paulatinamente o acesso ao acompanhamento médico regular e à TARV. “Cheguei a ficar dois anos sem acesso ao tratamento. Meu corpo começou a sentir as consequências e eu percebi que precisava fazer algo urgentemente. Era viver ou morrer, e eu decidi viver!”
Nilsa já estava vivendo com um novo companheiro, um brasileiro que trabalhava em garimpo na Venezuela e também vivia com HIV, quando decidiram emigrar. Foi ele quem lhe disse que no Brasil seria possível ter acesso a tratamento e medicamentos, distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Juntos, se prepararam durante um ano. Venderam tudo o que possuíam, juntaram documentos e no começo de 2018 partiram com o neto de 12 anos rumo à Santa Elena Uiarén, que faz fronteira com Paracaima, em Roraima, ponto de entrada do país de milhares de venezuelanos tentando escapar da crise.
De Paracaima seguiram para Boa Vista, mas a chegada não foi como imaginaram. Encontraram uma situação muito difícil. Decidiram não permanecer no primeiro abrigo onde se alojaram, devido às precárias condições sanitárias e de segurança. Julgaram que era melhor estar na rua, onde permaneceram por cerca de um mês. “Foi terrível. Dependíamos da ajuda das pessoas, mas sofríamos todo o tipo de discriminação e violência. E eu ainda não tinha ideia de como receber a ajuda que precisava para retomar o tratamento antirretroviral. Não tinha informação nenhuma”, conta ela.
Com o apoio que recebeu inicialmente, Nilsa começou o acompanhamento médico e da pequena casa onde estava morando fez funcionar seu espírito ativista. “Desde o começo, eu pensava numa forma de prover acolhimento e informação a outras pessoas vindo da Venezuela e chegando a Rio Branco em situação semelhante à minha, com recursos escassos e pouca informação”, lembra a ativista.
Dessa vontade inicial, nasceu Valientes por la Vida, na pequena casa que havia conseguido alugar. A estrutura era mínima, mas logo, graças principalmente a doações individuais e de ONGs, Nilsa foi conseguindo dotar o espaço de estrutura para acolher migrantes da Venezuela em busca de informação e tratamento para o HIV. “Somos Valentes porque é preciso muita valentia para sair do seu país, muitas vezes levando apenas o que tem nas mãos, em busca do tratamento que vai salvar a sua vida. Aqui somos uma família e buscamos oferecer acolhimento, informação alimentação e acompanhamos o tratamento médico.”
A rede de apoio à iniciativa inclui comunicação via redes sociais e serviços de mensagem por smartphone, pelos quais Nilsa e as outras pessoas valentes que a apoiam recebem informação sobre a chegada de migrantes em busca de tratamento e medicamentos para o HIV. A pandemia de COVID-19 afetou duramente esse processo, especialmente quando as fronteiras foram fechadas em março de 2020. “O fechamento dificultou muito o acesso de compatriotas ao tratamento e remédios que poderiam salvar suas vidas. Nós tentamos criar uma espécie de corredor humanitário, levando medicamentos até a fronteira para que alguém fosse buscá-los do outro lado, mas não conseguimos, infelizmente.”
Com a reabertura gradual da fronteira, iniciada em junho deste ano, Nilsa espera que logo estarão recebendo novos e novas migrantes vivendo com HIV em busca de acolhimento e tratamento. “Estamos um pouco mais preparados para isso. No começo, os primeiros valentes tinham de dormir no chão enrolados em cobertores. Agora, graças aos apoio que recebemos, já contamos com mais estrutura, com camas e cozinha melhor equipada. Antes, tinham de trazer até seus pratos e talheres.”
Segundo o Relatório Anual de Epidemiologia de Roraima, de 2020, nos anos de 2018 e 2019 foram notificados um total combinado de 1.137 casos de HIV/AIDS na população em geral. Entre a população estrangeira residente no estado, as pessoas migrantes da Venezuela representam o mais significativo número de casos combinados de HIV/AIDS para o mesmo período: 383. O relatório reconhece que “esses elevados casos de notificação de HIV/AIDS podem ser relacionados à imigração decorrente da crise política e econômica que passa o país da Venezuela e que faz fronteira com o Brasil.”
Em geral, as pessoas migrantes e refugiadas vivendo com HIV procuram o Brasil, tal como aconteceu com Nilsa Hernandez, justamente para ter acesso à terapia antiretroviral que já não conseguem mais obter na Venezuela. É neste contexto em que o UNAIDS estabeleceu uma parceria com a UNESCO para contribuir com a implementação do Plano de Resposta a Refugiados e Migrantes (RMRP, por sua sigla em inglês), junto com os parceiros da Plataforma R4V e o estado de Roraima.
Essa colaboração começou em dezembro de 2020 e resultou no desenvolvimento da Proposta de Ações em HIV/Aids e COVID-19 para 2021, que é uma estratégia conjunta, colaborativa e intersetorial contendo 20 ações que visam trabalhar de forma coordenada com a Plataforma R4V e os setores públicos de educação e saúde.
Claudia Velasquez, Diretora e Representante do UNAIDS no Brasil, explica que a proposta é reduzir o preconceito, estigma e discriminação relacionados a migrantes e pessoas refugiadas, e populações mais vulneráveis, como profissionais do sexo e população LGBTQIA+, jovens e povos indígenas. “Em alinhamento com o espírito da estratégia do UNAIDS para acabar com a epidemia de AIDS até 2030, queremos promover o empoderamento das populações vulneráveis por meio da disseminação de informação sobre o HIV, sobre direitos à saúde e os direitos das PVHIV e LGBTQIA+ resguardados pela legislação brasileira”, pontua Claudia.
Outros objetivos deste trabalho em parceria são promover a estratégia da Prevenção Combinada do HIV entre os profissionais de saúde da Operação Acolhida do Governo Federal, também integrada pela Plataforma R4V, e apoiar as organizações da sociedade civil locais a alcançar a sustentabilidade das suas atividades regulares, incluindo as ações de base comunitária realizadas junto a migrantes, pessoas refugiadas e outras populações-chave.
“Neste contexto, Nilsa Hernandez e as pessoas que, como ela, são Valentes pela Vida, mostram o enorme impacto que a atuação da sociedade civil tem no apoio e acolhimento das pessoas vivendo com HIV e nos esforços para enfrentar o estigma e a discriminação, potencializadores das desigualdades que impedem que acabemos com a pandemia de AIDS até 2030”, finaliza Claudia Velasquez.
Para o futuro, o sonho de Nilsa é que Valientes por la Vida se torne uma organização internacional, com pessoas voluntárias que se dediquem a apoiar as pessoas vivendo com HIV para que tenham acesso ao tratamento e a uma vida saudável. “Também quero que as pessoas parem de nos ver como soropositivos. Isto cria um estigma horrível que pesa sobre todos nós. Não somos soropositivos. Somos valentes e impacientes, porque temos pressa de viver, como todo mundo”, diz.
A mensagem que Nilsa deixa para as pessoas vivendo com HIV é justamente que sejam valentes e busquem o conhecimento e a ajuda necessária para realizar o tratamento. E para as brasileiras e brasileiros? “Zero discriminação! Somos irmãs e irmãos buscando ter uma vida plena plena e feliz.