Setembro marca o começo da primavera no hemisfério Sul. Na Casa Florescer, um centro de acolhimento para travestis e mulheres trans, em São Paulo, a estação das flores tem início com um projeto que combina arte fotográfica e autocuidado para ajudar as residentes a conhecer melhor a si mesmas, melhorar a autoestima e incorporarem as diversas possibilidades de prevenção combinada ao HIV em suas vidas. A iniciativa é uma parceria do UNAIDS com a Casa Florescer e o fotógrafo norte-americano Sean Black, especializado no registro fotográfico de população LGBTQIA+, especialmente das pessoas vivendo com HIV/AIDS.
O Projeto FRESH (“frescor”, em tradução livre ao português) visa compartilhar o conhecimento e estimular a adesão à prevenção combinada, uma estratégia que associa diferentes métodos de prevenção ao HIV, com foco na saúde integral das pessoas. Entre os métodos que podem ser combinados, estão incluídas a testagem regular para o HIV, que pode ser realizada gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a prevenção da transmissão vertical (quando a gestante vive com HIV e pode haver a transmissão para o bebê), o tratamento das infecções sexualmente transmissíveis (IST) e das hepatites virais, a imunização para as hepatites A e B, a redução de danos para pessoas que usam álcool e outras drogas, a profilaxia pré-exposição (PrEP), a profilaxia pós-exposição (PEP) e o tratamento para todas as pessoas que já vivem com HIV.
As 22 residentes da Casa Florescer que se integraram ao projeto tiveram a oportunidade de participar de um workshop no qual foram apresentados e discutidos os diversos aspectos da prevenção combinada e a importância do autocuidado, além de ter sido um momento de intensa troca de vivências. A partir desta troca inicial de experiências, e depois de passar por um treinamento de fotografia, elas continuaram refletindo sobre o seu cotidiano com a ajuda do fotógrafo Sean Black, que liderou as sessões fotográficas, que culminaram o projeto.
“Foi incrível perceber, ao longo dos dias, como várias das mulheres que tinham uma opinião muito negativa sobre si mesmas, refletindo o estigma que sofrem da sociedade, foram se descobrindo como as pessoas lindas e únicas que são e entendendo como é fundamental cuidar de si mesmas,” diz Sean Black. “As fotografias que eu tirei, e as que elas também tiraram, revelam a essência de cada uma delas e como são pessoas que sonham e querem ser felizes, como todo mundo”, completa Sean.
Claudia Velasquez, diretora e representante do UNAIDS no Brasil, concorda com esta visão e explica que, ao realizar o projeto com as travestis e mulheres trans, também se busca aumentar a visibilidade da comunidade trans e a adoção de métodos de prevenção. “Nossa ideia é trabalhar com elas como a prevenção combinada do HIV, especialmente a PrEP, representa um controle delas mesmas sobre seus corpos e suas vidas, além de incentivá-las a seguirem uma trajetória que lhes permita vincular-se a serviços de saúde e realizar seus sonhos de estudar, conseguir e permanecer no emprego.”
Prevenção combinada
Esta foi exatamente a tônica do workshop que deu início ao projeto e que foi liderado por Ariadne Ribeiro, assessora para Apoio Comunitário do UNAIDS no Brasil. Ela destacou a importância do autocuidado e da prevenção combinada, especialmente a adesão à PrEP, que requer que a pessoa escolha um estilo de vida pautado na autonomia sexual e autocuidado. Ariadne usou uma abordagem de manejo de contingência e de reforço positivo para encorajar a adoção de comportamentos empoderadores entre as travestis e mulheres trans residentes na Casa Florescer.
“Com este projeto, queremos mostrar que sororidade trans significa também fortalecer o caminho do autorrespeito, do amor-próprio e do autocuidado”, destaca Ariadne. “O estigma e a discriminação, associados à lógica punitivista da sociedade, só aumentam o abismo social que os grupos mais vulneráveis são obrigados a enfrentar. Por isso, o reforço positivo, neste caso representado pela arte fotográfica, é transformador e um caminho para um processo de mudança pessoal e coletiva.”
Beto Silva, coordenador da Casa Florescer, concorda sobre a importância de trabalhar o cuidado com a própria saúde e a autoconfiança como forma de ajudar travestis e mulheres trans acolhidas a ter um plano de vida mais saudável e propositivo. “Temos recebido muitas residentes bem jovens e com uma trajetória de vida extremamente difícil. É muito importante ajudá-las a conhecer e aderir a estratégias de prevenção combinada que lhes ajudem a adotar um estilo de vida baseado no autocuidado. E a arte, especialmente a fotografia, é uma forma muito eficiente para mobilizá-las e engajá-las.”
Autodescoberta
Nos dias seguintes ao workshop, as residentes da Casa Florescer passaram por um processo intenso de reflexão sobre si mesmas, em preparação para as sessões de fotografia. Sean Black liderou dois workshops de fotografia nos quais trabalhou não apenas aspectos técnicos, mas especialmente a reflexão sobre o conceito de beleza como uma expressão da individualidade e da verdade de cada uma das travestis e mulheres trans participantes do projeto. Um elemento importante foi justamente o de mostrar como o autocuidado e a prevenção combinada refletem essa tomada de autoconsciência e impacta na vida de cada uma delas.
“Eu trouxe minha própria experiência de vida, como pessoa queer que vive com HIV, que já passou por situações muito difíceis antes de controlar minha própria adição por drogas, e isto me ajudou, sem dúvida, a criar uma conexão imediata com as residentes da Casa Florescer, que considero como minhas irmãs”, explica. “Eu me identifico com as suas vivências, expectativas e temores frente à vida e procurei ajudá-las a deixar florescer e desabrochar a beleza que cada uma traz dentro de si. E o resultado pude sentir ao longo dos dias, quando várias delas diziam não acreditar que eram as pessoas maravilhosas retratadas e eu respondia que as fotos representavam quem elas na realidade, muito diferente do que a sociedade lhes impõe todos os dias.”
Esta sensação de autodescoberta fica patente na forma como algumas das participantes do projeto descrevem a experiência. Para Flávia Santos, que é residente da Casa Florescer e estudante de radiologia, o Projeto FRESH a ajudou a entender mais ainda a importância do autocuidado para se valorizar mais e se reencontrar.
“Quando nós, mulheres trans, saímos de nossas casas rumo a um novo mundo, com nossos sonhos, nossos desejos de ser alguém na vida, muitas vezes recebemos tantos ataques, que acabamos esquecendo quem somos. O workshop da Ariadne sobre prevenção e autocuidado e as fotografias com o Sean Black nos lembram que somos pessoas especiais, que somos fortes, que merecemos respeito. Que somos pessoas incríveis”
Flávia Santos, estudante de radiologia
Inspiração
As sessões de fotografia, lideradas por Sean Black, seguiram uma proposta de modelagem profissional, apoiada por uma equipe de maquiagem e usando diversas propostas de roupas e adereços. A construção do perfil fotográfico de cada participante foi feita individualmente, tratando de capturar as características e percepções pessoais, resumidas em palavras que elas escreveram em seus corpos para uma das sessões de fotografia.
Nos próximos meses, as fotos farão parte de ações voltadas para ampliar o conhecimento e a adesão às estratégias de prevenção combinada, especialmente focando nas populações mais vulneráveis.
“A chegada da primavera nos inspira a pensar e agir de forma inovadora e com frescor para fazer frente às muitas desigualdades que dificultam ou impedem que pessoas, especialmente de populações mais vulneráveis, como travestis e mulheres trans, tenham acesso às diferentes opções disponíveis para ter uma vida saudável e produtiva. Com o Projeto FRESH, vemos a beleza que existe em cada uma destas mulheres e todo o potencial que elas têm. Queremos que outras mulheres trans e travestis se inspirem nas meninas da Casa Florescer e adotem a prevenção combinada para suas vidas”, finaliza Claudia Velasquez.