Este artigo apareceu pela primeira vez no The Guardian
Nove meses atrás, lideranças mundiais faziam fila para declarar qualquer vacina contra a COVID-19 um bem público global. Hoje somos testemunhas de um apartheid de vacinas que só serve aos interesses de poderosas e lucrativas corporações farmacêuticas, ao mesmo tempo que nos custa o caminho mais rápido e menos prejudicial para sair desta crise.
Fico enjoada com as notícias da semana passada de que a África do Sul, um país cuja história do HIV deveria ter nos ensinado as consequências mais terríveis de permitir que as empresas farmacêuticas protegessem seus monopólios de medicamentos, teve de pagar mais do que o dobro do preço pago pela União Europeia para a vacina AstraZeneca para muito menos doses do que realmente precisa. Como tantos outros países de renda baixa e média, a África do Sul enfrenta hoje um cenário de vacinas de suprimento esgotado, onde é o poder de compra, e não o sofrimento, que garantirá as poucas doses restantes.
Nove em cada 10 pessoas que vivem nos países mais pobres não devem ser vacinadas este ano. Atrasos na produção colocam até mesmo esse número em dúvida. Preços injustificadamente altos bloqueiam o acesso e ameaçam empurrar mais países para uma crise de dívida cada vez mais profunda. Se continuarmos buscando o modelo de vacina que temos, não conseguiremos controlar essa pandemia por muitos anos.
O fracasso em mudar o curso custará milhões de vidas e meios de subsistência em todo o mundo; o nosso progresso no combate à pobreza; para empresas, incluindo aquelas representadas aqui no Fórum Econômico Mundial esta semana; e para nossa saúde pública coletiva e segurança econômica. Porque não se engane, os custos da desigualdade da vacina não se limitarão aos que vivem nos países mais pobres.
Quanto mais tempo o vírus puder continuar em um contexto de imunidade desigual, maior a chance de mutações que podem tornar as vacinas menos eficazes ou ineficazes – tanto as que temos quanto as vacinas que algumas pessoas nos países ricos já receberam.
Uma pesquisa encomendada pela Câmara de Comércio Internacional publicada esta semana prevê que atrasos no acesso à vacina em países mais pobres também custarão à economia global cerca de US$ 9 trilhões, com quase metade disso absorvido em países ricos como Estados Unidos, Canadá, Alemanha e o Reino Unido.
Não podemos retroceder os últimos nove meses ou o fracasso dos governos até agora em cumprir sua promessa de tornar as vacinas contra a COVID-19 um bem público global. Mas podemos e devemos agir agora para mudar a trajetória catastrófica desta pandemia. A ciência, o conhecimento e a tecnologia das vacinas, pagos em grande parte por mais de US$ 100 bilhões do dinheiro de contribuintes, não podem mais ser tratados como propriedade privada das empresas farmacêuticas. Em vez disso, eles devem ser compartilhados abertamente, por meio do Covid Technology Access Pool da Organização Mundial da Saúde para que mais fabricantes possam ser incluídos e um plano global seja colocado em ação para aumentar a produção de vacinas.
Para abrir o caminho para isso, os governos também devem apoiar urgentemente a proposta apresentada à Organização Mundial do Comércio de renunciar temporariamente aos direitos de propriedade intelectual para as vacinas, tratamentos e testes contra a COVID-19 até que o mundo alcance a imunidade coletiva extremamente necessária e esta pandemia esteja sob controle.
Quase todas as empresas no planeta tiveram que deixar de funcionar normalmente como resultado desta pandemia. É do interesse de todas as pessoas que as empresas farmacêuticas agora façam o mesmo. Convido governos e lideranças empresariais a se unirem ao crescente apelo por uma vacina popular e de forma conjunta possamos traçar um novo caminho que pode garantir vacinas, testes e tratamentos suficientes para todas as pessoas em todas as nações.
Por Winnie Byanyima, diretora executiva do UNAIDS