Ao longo de mais de uma década trabalhando no campo do HIV, entre os inúmeros relatos de experiências de discriminação que já escutei de pessoas vivendo com HIV/AIDS, um dos que mais me marcaram foi a de um ativista reconhecido e respeitado nacionalmente por sua longa trajetória de atuação em defesa dos direitos das pessoas afetadas pela epidemia. Ele confidenciou, durante uma reunião, que, em sua própria casa, sua mãe ainda mantinha separado seus pratos, talheres e copos. A partir dessa única história, você conseguiria imaginar as possíveis situações de discriminação vivenciadas pelos mais de 900 mil brasileiros e brasileiras que vivem com HIV/AIDS hoje?
Sendo impossível escutar todas essas pessoas, e dada a importância de termos indicadores sobre este tema – afinal conhecer o problema é o primeiro passo para enfrentá-lo – o UNAIDS apoiou a realização de um estudo inédito no país: o Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS. Ao longo de 4 meses, 26 pessoas vivendo com HIV/AIDS trabalharam como entrevistadores e entrevistadoras, e escutaram as histórias e experiências de discriminação de outras 1.800 pessoas vivendo na mesma condição em sete capitais brasileiras.
Com esta iniciativa – que foi possível somente graças à soma dos esforços das quatro redes nacionais de pessoas vivendo com HIV/AIDS (RNP+, MNPC, RNAJVHA e RNTTHP) e instituições parceiras, como o PNUD, a ONG Gestos e a PUC-RS –, esperamos dar uma contribuição importante para ampliação do debate de sociedade em torno do HIV e da AIDS, principalmente no que diz respeito ao entendimento das construções e dos impactos nefastos que o estigma e a discriminação ainda impõem às pessoas afetadas pelo HIV no Brasil.
Neste ano, o UNAIDS celebrou o Dia Mundial contra a AIDS relembrando e homenageando o papel dos ativistas e comunidades na resposta à epidemia do HIV. Como afirmou a diretora executiva global do UNAIDS Winnie Byanyima, “sem a liderança comunitária, 24 milhões de pessoas não estariam em tratamento hoje. Sem as comunidades lideradas por mulheres vivendo com HIV e afetadas pelo vírus, não estaríamos perto de acabar com novas infecções pelo HIV entre crianças. Diante das adversidades, comunidades de homens gays, de profissionais do sexo e pessoas que usam drogas se organizaram para reivindicar seu direito à saúde como cidadãos e cidadãs iguais”.
No Brasil, é fundamental também reconhecer o papel histórico da luta das pessoas que vivem com HIV/AIDS para o alcance de todas as conquistas que tivemos nas últimas décadas, incluindo o tratamento gratuito e universal. Desde os primeiros anos da epidemia, ativistas transformavam sentenças de morte em laços de solidariedade e engajamento na luta por políticas públicas de prevenção, testagem e tratamento, bem como para a defesa e promoção dos direitos humanos das pessoas que vivem com HIV/AIDS e das populações historicamente mais afetadas.
Os dados do Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS infelizmente nos mostram que a luta contra o estigma e a discriminação ainda está longe de ser vencida. Por conta do estigma e da discriminação, muitas pessoas vivendo com HIV/AIDS têm medo de falar abertamente sobre sua sorologia, até mesmo com familiares mais próximos. Com medo de sofrer discriminação, muitas pessoas deixam de buscar ou abandonam o tratamento, e podem morrer por causas relacionadas à AIDS. Talvez
você possa achar que não conheça nenhuma pessoa vivendo com HIV, mas elas estão entre nós, são parte da nossa família, são vizinhos e vizinhas, colegas de escola ou de trabalho.
Vencer o estigma e a discriminação relacionados ao HIV/AIDS não será uma tarefa fácil. Precisaremos de mais e melhores políticas públicas intersetoriais. Precisaremos de mais financiamento para projetos e iniciativas comunitárias. E, talvez, o mais importante: precisaremos que cada pessoa faça sua parte, substituindo medo por informação e a discriminação por empatia e solidariedade. Como já nos ensinava Herbert Daniel, ainda no início da epidemia, “diante do preconceito e do medo, a informação e a solidariedade têm sido cada vez mais oferecidas como a única resposta verdadeiramente eficiente ao avanço da AIDS.”
Cleiton Euzébio de Lima, Diretor interino do UNAIDS no Brasil