Resiliência, pensamento crítico, empoderamento, criação e fortalecimento de redes solidárias capazes de organizar melhor as respostas comunitárias frente aos desafios. Estes são os resultados esperados com a utilização da técnica de Terapia Comunitária, criada por Adalberto Barreto, em 1987, na Universidade Federal do Ceará. Em tempos de COVID-19, a técnica se apresenta como uma ferramenta potente para redes de pessoas vivendo com HIV, proporcionando a possibilidade de criação de uma rede de proteção, fundada a partir da própria comunidade.
“Eu acredito que este movimento foi muito importante para a rede [nacional de adolescentes e jovens vivendo com HIV e AIDS, RNAJVHA] porque a gente conseguiu olhar um para o outro a partir de nossas potencialidades”, conta Leonardo Moura da Silva, 25 anos, membro da RNAJVHA que vive em Florianópolis (SC). “A terapia comunitária apresentou novos elementos para a abordagem que a gente faz com os jovens vivendo com HIV. O treinamento aprimorou nossa capacidade de escuta. Não tem como escutar o outro se a gente não se escuta.”
Leonardo fez parte de um pequeno grupo de ativistas da Rede de Jovens que participou de quatro encontros virtuais, organizados pelo UNAIDS, entre maio e junho. Ele e seus pares da rede agora têm a responsabilidade de replicar esta técnica, adaptada para o contexto de pandemia de COVID-19 e de pessoas que vivem com HIV.
Uma pesquisa realizada pelo UNAIDS entre 27 e 31 de março, no início das medidas de distanciamento físico impostos pela COVID-19, mostrou que entre as quase 3.000 pessoas vivendo com HIV e vivendo com AIDS que responderam ao questionário, 66,7% disseram ter sentido alterações em seu humor ou em seus comportamentos e hábitos devido à pandemia de COVID-19.
Foram feitas perguntas simulando situações cotidianas, em que os parâmetros que estavam sendo avaliados foram adaptados do Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5), e a quantidade de perguntas que as pessoas respondiam resultou em uma soma que possibilitou um indicativo de necessidade de auxílio médico psiquiátrico, ou acompanhamento psicológico. A soma das respostas deu origem a indicativos de sintomatologia leve (44%), moderada (18%) e grave (2%) – sendo que 36% dos resultados foram classificados como inválidos ou não informados.
“A iniciativa do UNAIDS de adaptar a técnica da Terapia Comunitária e criar um Guia Rápido como forma de apoiar as redes de pessoas vivendo com HIV e vivendo com AIDS é uma resposta ao que a pesquisa apontou”, conta Ariadne Ribeiro, assessora para apoio comunitário no UNAIDS e facilitadora da primeira série de oficinas virtuais com a rede de jovens. “É uma técnica que não é necessariamente da psicologia. Por se tratar diretamente dos determinantes sociais de saúde, ela pode ser aplicada por qualquer pessoa com treinamento específico. E a intenção é exatamente essa.”
Ribeiro é Mestre e Doutoranda pela Psiquiatria e Psicologia Médica da UNIFESP (Escola Paulista de Medicina) e criou importantes grupos de terapia comunitária que foram responsáveis por resultados significativos entre populações LGBTI em situação de rua, e em um ambulatório para saúde integral de travestis e transexuais.
“Participar destas oficinas foi supreendente e libertador. Surpreendente porque eu achava que seria uma coisa meramente teórica e, depois dos momentos iniciais com a parte teórica, a terapia comunitária foi aplicada conosco e isso foi libertador”, lembra San Diego Oliveira Souza, 28 anos, suplente da Secretaria Executiva da Rede de Jovens. “A gente ainda está num tempo em que não consegue colocar certas coisas para fora, eu mesmo não estava conseguindo fazer isso. Com esta parte prática, eu acabei achando este espaço para colocar algumas coisas para fora e, ao mesmo tempo, aprender uma técnica nova para aplicar em nosso dia-a-dia de trabalho na rede.”
As regras definidas são facilmente replicadas pelos facilitadores treinados, que devem, seguindo um Guia Rápido elaborado pelo UNAIDS, tornar possível que as pessoas tenham tempo de fala controlado e eleger a temática que contemplaria o maior número de participantes presentes na terapia. “É uma linguagem muito universal, uma forma de fazer o acolhimento se tornar muito acessível. Então ela pode alcançar diferentes contextos e diferentes pessoas. Pensando em Brasil, as diversas realidades e contextos que temos, acho que é a melhor abordagem que podemos ter para este momento atual”, diz Leonardo.
Para Guilherme Ferreira Barbosa, 23 anos, que atua fazendo acolhimentos pela rede em Belo Horizonte (MG), participar das sessões de capacitação e vivência em Terapia Comunitária o fez perceber melhor a importância desse contato com as pessoas que passa pelas mesmas situações que ele: “me deixa muito mais próximo e menos vulnerável para lidar com estas questões.”
“Esse trabalho em coletividade é importantíssimo neste momento, principalmente agora, vivendo uma pandemia em que ainda não sabemos qual é o nosso futuro e como vamos passar por isso”, relembra. “Trouxe um impacto muito positivo no sentido de entender mais e compreender mais o outro, mesmo passando por situações semelhantes, existem abismos gigantescos de diferenças e particularidades de cada indivíduo. Este tipo de terapia comunitária unifica mais as pessoas e humaniza nossos sentimentos em relação à gente e ao próximo.”
Juntos, esses jovens já começaram a aplicar a técnica em seus encontros virtuais, já programam novas sessões de diálogos para despertar conhecimento, autoconhecimento e autopreservação dos membros da rede que, muitas vezes, se sentem frustrados e frustradas por não conseguirem lidar com estes problemas.
“Nós já estamos colocando em prática nos nossos núcleos estaduais e até nas reuniões do secretariado nacional”, conta Severino Pereira da Silva Júnior, 28 anos, Secretário Nacional Titular da pasta de Acolhimento e Coordenador Estadual do Núcleo da Rede de Jovens Positivos do Ceará. “O objetivo é aproveitar que nós passamos por essa vivência para potencializar o que a gente tem como acolhimento na rede. Estamos usando nas reuniões virtuais, mas já estamos planejando atividades de forma lúdica e prática para quando nós retomarmos as ações presenciais.”
Como resultado destes encontros, e como fruto de uma construção conjunta com a RNAJVHA e outros parceiros, o UNAIDS criou o Guia rápido de saúde mental e HIV em tempos de COVID-19: fortalecendo as capacidades de acolhimento e a resiliência das redes de pessoas vivendo com HIV e vivendo com AIDS com base na terapia comunitária. “Foi uma construção a várias mãos. Além dos jovens que participaram das quatro sessões, contamos com o apoio de Raphaela Fini, assistente social que tem me apoiado desde as ações com populações de rua LGBTI e no ambulatório de saúde integral de travestis e transexuais”, conta Ribeiro.
Este Guia é um instrumento criado especificamente para apoiar o trabalho de capacitação das redes de pessoas vivendo com HIV e vivendo com AIDS em seu processo de compreensão e aplicação dos princípios de Terapia Comunitária em tempos de COVID-19, levando em consideração todas as recomendações de distanciamento físico e os impactos na saúde mental desta população específica. No entanto, o UNAIDS destaca que quaisquer estratégias de ajuda mútua não excluem a necessidade de manutenção dos tratamentos medicamentosos ou de acompanhamentos psicológicos.
“Eu sei o quanto dói perder alguém para o suicídio, meu marido tinha um transtorno subdiagnosticado e precisava muito de um suporte, infelizmente, ele se foi, mas eu passei a buscar respostas nos estudos e passei a amar a psiquiatria”, conta a assessora para apoio comunitário do UNAIDS. “Espero que este guia ajude as pessoas a reduzir os estigmas relacionados à saúde mental e a procurar os profissionais de saúde para o tratamento adequado”.
“Localmente, a terapia comunitária e as oficinas que recebemos vieram para lapidar aquele acolhimento de grupo que algumas bases já exerciam em seus estados. A oficina trouxe mais técnica para a gente. Quando a gente conseguir levar isso para as bases, acho que elas vão ter mais domínio técnico para contornar mais situações em suas terapias em grupo”, conta San Diego. “E a nível nacional, nestes tempos de COVID-19, com os serviços de terapia suspensos, decidimos em reuniões de fazermos encontros virtuais a cada 15 dias, com número limitado de pessoas, para discutir alguns temas relevantes e colocar para fora o que elas estão sentindo.”