Mulheres no espelho: enxergando a si mesma

Na noite anterior ao início das filmagens, a produtora Swati Bhattacharya passou longas horas com uma das atrizes para garantir que ela entendesse o espírito de seu filme.

“Por causa da COVID-19, eu não pude participar, então falamos ao telefone e eu disse a ela que, sem utilizar palavras, ela precisava transmitir medo seguido de aceitação”, disse Bhattacharya.

O filme “O espelho” retrata um menino que está chateado e escolhe não brincar com outras crianças durante um festival indiano de pipa. Sua mãe o provoca para participar, mas ele sai escada abaixo sozinho. Ele se envolve em um lenço de uma mulher e sorri ao ver seu reflexo em um espelho.

Momentos depois, sua mãe e sua avó o pegam dançando vestido com pulseiras e batom. A música para e as mulheres olham para o menino. Alguns segundos de susto passam e, de repente, as mulheres se juntam a ele.

“Vejam, esta história se desenrola em muitos níveis”, disse Bhattacharya. “O ponto principal é que temos que aceitar as crianças como elas são e, neste caso, construir a confiança”. Ela apontou para o fato de que 98% das pessoas trans na Índia deixam seus lares ou são expulsas. Inevitavelmente, muitas vivem nas ruas sem dinheiro ou educação, muitas vezes realizando trabalho sexual.

“A visibilidade também é algo importante”, disse a executiva de publicidade. “Ou você não gosta do corpo em que vive ou odeia a sociedade em que vive.” Ela queria captar o momento crucial do autorreconhecimento. Muitas vezes, explicou ela, olhamos as crianças como nossos projetos e queremos torná-las extrovertidas, estudiosas e obedientes, recusando vê-las pelo que elas são e como elas querem crescer”.

“Eu queria mostrar como as pessoas (trans) estão vendo o que querem ver e não como o mundo as vê”, disse Bhattacharya.

Citando uma frase frequentemente utilizada, ela acrescentou: “É mais fácil aceitar uma criança do que consertar um adulto quebrado”.

Em sua opinião, a maioria dos adultos foi agredida e machucada de alguma forma, mas as pessoas trans em seu país e em todo o mundo sofrem ainda mais—por falta de moradia, por violência sexual e por doenças mentais.

As estatísticas mostram que adolescentes trans têm mais propensão a tentar o suicídio do que adolescentes cujas identidades correspondem ao que consta em suas certidões de nascimento. Além disso, pessoas trans enfrentam discriminação e em alguns países podem ser presas apenas por ser quem são. Além disso, as mulheres trans têm algumas das maiores taxas de HIV, até 40% em alguns casos.

Bhattacharya conhece muito bem estes números sombrios. Uma de suas campanhas publicitárias anteriores focava em desafiar as tradições de exclusão de longa data. Sua equipe tornou uma celebração tradicionalmente restrita às mulheres casadas e a abriu a todas as mulheres.

“Como publicitária, percebi que estávamos usando a versão padrão de mulher ideal, quando, na verdade, as mulheres são muito diversas”, disse ela. Rindo, Bhattacharya disse que percebeu que durante anos ela não tinha atendido consumidoras como ela. Isso a levou a conhecer mais mulheres e a buscar suas histórias.

A campanha Sindoor Khela não só ganhou elogios e prêmios, como também abriu seus olhos para a diversidade e também para as muitas divisões sociais. “Mulheres casadas contra não casadas, mães contra não casadas, divorciadas contra viúvas, etc.”, disse Bhattacharya.

A produtora queria reunir essas divisões enfatizou que a irmandade é um recurso inexplorado. Seu filme, “O Espelho”, reforça esse recurso.

“De certa forma, a mãe tem uma aspiração, ela está tomando a decisão de aceitar seu filho e transformá-lo em uma celebração”, disse Bhattacharya. “O filme tem uma forte agenda feminista porque as duas mulheres são como um manto, ou duas luzes de palco, se você preferir.”

Tea Uglow, acima, descreveu o filme como descarado. “No final das contas é um conto de fadas e sabemos que é um conto de fadas. No entanto, você se pergunta ‘o que realmente está impedindo que isto seja perfeitamente bom?’” Como uma mulher trans que vive na Austrália, ela deseja que as famílias reajam exatamente assim. O que também a impressionou sobre o filme é que ele não tem tons emocionais negativos. Sem raiva, sem medo. “Ninguém tem motivos para temer uma criança trans… ainda que nos digam isso repetidamente”.

Para Jas Pham, acima, uma mulher trans que vive em Bangkok, Tailândia, o vídeo tocou seu coração. “Basicamente, eu chorei ao ver o vídeo. Isso me fez lembrar da minha infância”, disse ela.

Ela disse que se concentrou na criança, mas depois pensou mais sobre o espelho. “É apenas um reflexo; você se vê e não há julgamento”, disse ela, acrescentando que esta é uma mensagem poderosa de reconhecimento e aceitação para as famílias de crianças trans e com gênero diverso em todo o mundo.

Cole Young, um americano trans, sabe que os pais nem sempre abraçam seus filhos desta maneira aberta e acolhedora, mas ele gosta da sensação positiva e feliz do filme. “Conhecemos as más reações e já as experimentamos, por isso não precisamos retraumatizar as pessoas trans”.

Cole e Jas trabalham para a Asia Pacific Transgender Network, uma organização não-governamental que promove os direitos das pessoas trans e de diversidade de gênero. Além disso, concordaram que, mesmo que o vídeo tenha sido filmado na Índia, a mensagem é universal.

Keem Love Black, acima, uma mulher trans ugandense, disse que o filme ressoou com ela porque na mesma idade ela viveu momentos semelhantes, e ainda vive até hoje. “Eu tenho momentos em frente ao espelho o tempo todo, especialmente quando estou saindo”, disse ela.

Keem Love Black dirige a Trans Positives Uganda, uma organização comunitária que cuida de mulheres trans trabalhadoras do sexo e refugiadas que vivem com HIV. Ela tem usado a mídia social para aumentar a conscientização sobre questões relativas a lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans e pessoas intersexo (LGBTI) porque poucas pessoas se atrevem a falar. Uganda criminaliza a homossexualidade, de modo que ainda lida com a homofobia persistente e a transfobia entre seus pares e entre a comunidade e nos serviços de saúde. Refletindo sobre o filme, ela disse: “Devemos aproveitar todas as oportunidades que surgem para nossa visibilidade”.

O UNAIDS lança “O Espelho” no Dia Internacional da Visibilidade Trans. A diversidade de gênero não é uma escolha de estilo de vida, mas um direito inerente de todas as pessoas. Os estereótipos de gênero, especialmente em relação às pessoas LGBTI, levam ao estigma e à discriminação. Isto é mais acentuado em crianças e adolescentes, pois a diversidade entre esse grupo não é comumente compreendida e a sociedade os e as pressiona maciçamente para que se conformem às normas de gênero atribuídas.

Acima, Kanykei (que preferiu não dar um sobrenome) é uma das poucas pessoas trans que vive abertamente na capital quirguizistanesa de Bishkek. Ela se lembra de colocar lenços de pescoço quando era uma criança, um pouco como a criança do filme. No entanto, sua família não a levou a sério. Desde que ela se lembra, antes de perceber a diferença entre meninos e meninas, ela se sentia como uma menina. “Eles riam como se uma criança pequena estivesse brincando, mas, com o tempo, era percebida de maneira diferente, tanto na família quanto na sociedade”, disse ela.

Ela teve que ajustar seu comportamento e se comportar como um homem. Antes da morte de sua avó, há cinco anos, ela começou a considerar a transição, mas não podia lhe dizer a verdade. “Eu vivia com este conflito de identidade de gênero o tempo todo até que decidi fazer a transição e viver como eu me sinto”, disse ela.

Ariadne Ribeiro, acima, uma mulher trans brasileira, compara seu próprio momento espelho como se estivesse tentando se encontrar dentro de si mesma. Dito isso, também a assustou. “Havia sempre um medo muito grande de que as pessoas pudessem me ver através do espelho como eu me via e meu segredo seria revelado, e eu não estava pronta”, disse ela. “Sinto que o vídeo aproxima uma realidade do ideal de aceitação, algo que eu, aos 40 anos de idade, não vivi”.

Como ativista trans de longa data e agora assessora de para apoio Comunitário no UNAIDS, a Ariadne disse que a mudança está acontecendo, mas que é preciso haver mais engajamento.

Era exatamente isso que Bhattacharya pretendia mostrar em seu filme. Para ela, quando o trabalho ganha força, é isso que faz com que tudo isso valha a pena. Ela também enfatizou que as “dores de crescimento” que muitos de amigos e amigas de gênero fluido sofreram ao longo dos anos são reais. “Eu queria abrir os portões e fazer com que as pessoas continuassem o diálogo”.

Veja o filme. Participe da campanha #Seemeasiam on this #TransDayOfVisibility #TDOV2021.

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