O ‘paciente de Berlim’: a constante superação do estigma

O norte-americano Timothy Ray Brown, conhecido como “paciente de Berlim”, esteve no Brasil em abril deste ano para participar de um simpósio de AIDS e da abertura da exposição de arte contemporânea O.X.E.S (termo que, de trás para frente, remete à palavra sexo), realizada na capital paulista entre 17 de abril e 29 de junho.  

O evento, que contou com o apoio do UNAIDS, foi idealizado pela ativista e artista plástica Adriana Bertini. Brown conversou com o UNAIDS sobre sua relação com o HIV e as razões que o levaram a se posicionar como ativista da causa, principalmente depois de ter sido curado do HIV através de transplantes de medula.  

Para chegar à decisão de revelar ao mundo que era o “paciente de Berlim”, Brown conta que precisou superar diversas barreiras impostas pelo estigma. A primeira delas, a de “sair do armário” e dizer a todos que era homossexual. “Vivi a questão do estigma quando eu saí do armário e disse a todos que era gay. Na verdade, fui forçado a fazer isso porque um amigo queria que eu ficasse com ele eu preferi sair com outra pessoa”, relembra. “Então, eu andava pelos corredores da escola e ouvia as pessoas me chamarem de ‘bicha’.” 

Cleiton Euzébio de Lima, Adriana Bertini, Tim Brown, Fabiana Gabaskallás, Wanessa Camargo. Foto: Felipe Prado

Em relação ao HIV, ele conta que sua primeira vitória veio ao superar um obstáculo interno. “Havia uma percepção minha de que eu não me sentia completamente normal com o HIV. Era estigma internalizado. Mas logo superei isto”, conta o norte-americano. “Eu realmente não sentia tanto estigma em Berlim [onde morava quando recebeu o diagnóstico]. Em outras partes da Alemanha, sim, já que não era tão aberto e aceitável. Mas eu sabia que o estigma existia em outros lugares. Foi quando voltei para os Estados Unidos que aprendi que ainda havia muito estigma [em relação às pessoas vivendo com HIV] por lá.” 

Brown descreve seus casos de transplante de medula como uma “boa dose de sorte”. Em um artigo, publicado em 2015, na AIDS Research and Human Retroviruses, ele conta, em detalhes, sua trajetória para vencer a leucemia mieloide aguda, diagnosticada dez anos depois de seu diagnóstico positivo para HIV.  

“Muitos pacientes não têm nenhum doador compatível; eu tive muitos, 267. Isso deu ao Dr. Huetter [seu médico à época] a idéia de procurar um doador que tivesse uma mutação chamada CCR5 Delta 32 nas células CD4, tornando-as quase imunes ao HIV. O CCR5 é uma proteína na superfície da célula CD4 que atua como porta de entrada para o HIV penetrar na célula. Tire essa entrada e as células CD4 não serão infectadas e a pessoa não terá HIV. Sua equipe encontrou um doador com essa mutação na 61ª tentativa. Ele concordou em doar”, escreve Brown. 

Tim Brown com sua gravata feita de preservativos

“Confesso que o diagnóstico de leucemia me impactou muito mais que o de HIV. Apesar do estigma internalizado que precisei superar, e de ouvir alguns amigos dizendo que eu teria poucos anos de vida depois do HIV, algo dentro de mim me dava certeza de que eu iria tocar a vida normalmente, que estava pronto para continuar a faculdade que cursava em Berlim”, disse ele na conversa com o UNAIDS, em São Paulo. “Mas com o diagnóstico de leucemia, e o resurgimento dela mesmo depois do primeiro transplante, eu senti que era grave.” Como ele mesmo escreve neste artigo de 2015:  “a taxa de sobrevivência para transplantes de células-tronco não é grande; normalmente é cerca de 50/50.”  

Depois de várias sessões de quimioterapia e dois transplantes de medula—o último em 2008—o “paciente de Berlim” teve muitas dificuldades na recuperação. Sofreu com delírios, quase ficou cego e com paralisia. Levou cerca de seis anos para reaprender a andar e se recuperar.  

Outro momento de superação foi quando decidiu contar para o mundo que ele era o “paciente de Berlim”. “Demorei alguns anos para sentir que eu estava pronto. Na verdade, fui convidado para ir à Conferência Internacional sobre AIDS, em Viena [em 2010]. E eu meio que queria ir, mas meu ex-parceiro, à época, tinha terminado comigo dizendo que eu não estava pronto”, relembra.

Tim Brown durante entrevista para o UNAIDS

Em seu artigo, Brown descreve em detalhes este processo. “Enquanto estava em recuperação, havia muita conversa sobre meu caso entre cientistas e médicos. Eu não estava pronto para me tornar público, mas, no final de 2010, decidi divulgar meu nome e minha imagem para a mídia. Eu deixei de ser o ‘paciente de Berlim’ para usar meu nome verdadeiro, Timothy Ray Brown. Eu não queria ser a única pessoa no mundo curada do HIV; eu queria que outros pacientes vivendo com HIV se juntassem ao meu clube.” 

Em 2012, durante a Conferência Internacional de AIDS de Washington DC, ele lançou a Fundação Timothy Ray Brown para apoiar o trabalho conjunto de cientistas, médicos, instituições e universidades que pesquisam sobre a cura e sobre vacinas contra o HIV. “Há algo chamado de ‘culpa pela sobrevivência’ [do termo em inglês ‘survivel guilt’]. Eu tive uma enorme quantidade de ‘culpa pela sobrevivência’ porque não sou apenas um sobrevivente do HIV, estou curado, ele desapareceu do meu corpo”, explica Brown sobre como superou esta última camada de estigma em sua vida para chegar onde está hoje.  

“Eu quero que todas as pessoas que vivem com HIV sejam curadas. Não do jeito que eu fui, porque é muito perigoso e muito caro, e é muito difícil encontrar doadores que possuam o mecanismo que gera a mutação necessária. Eu acho que, de alguma maneira, fui escolhido para fazer o que estou fazendo, para estar vivo. Alguns poderes superiores decidiram que eu deveria estar aqui vivo, porque iria levar minha mensagem adiante para ajudar as pessoas.” 

A exposição O.X.E.S 

Composta por instalações, obras tridimensionais, colagens, moda, elementos audiovisuais e séries de fotografias, a mostra apresentou também trabalhos de convidados especiais, como a médica e artista visual Fabiana Gabaskallás que, há mais de 20 anos, trabalha com pacientes vivendo com HIV e estuda fotografia e artes visuais.  

Também compõe o acervo da exposição a mostra “O.X.E.S Friends”, uma série de fotografias em parceria com o jornalista e fotógrafo norte-americano Sean Black, que registrou filântropos e celebridades comprometidas com o tema, usando algumas peças de arte ícones de Adriana Bertini, entre elas a Bow Tie (gravata borboleta) e a Cartola. Além de Tim Brown, abraçaram a causa nomes de peso, como Dr. Michael Gottlieb, físico e médico imunologista que descobriu o HIV em 1981, Janson Stuart, Sheryl Lee Ralph, Kelly Gluckman, Thomas Davis, entre outros artistas.

A cantora Wanessa Camargo, Embaixadora de Boa Vontade do UNAIDS no Brasil, foi clicada pelas lentes do renomado fotógrafo brasileiro Bob Wolfenson para integrar esta série de fotografias.  Wanessa foi nomeada Embaixadora de Boa Vontade do UNAIDS em dezembro de 2015 e, desde então, tem dedicado seu tempo e sua influência nas mídias para participar de campanhas e iniciativas que busquem sensibilizar seus fãs e o público em geral sobre a importância da prevenção do HIV, do tratamento do vírus e da zero discriminação.  

Adriana Bertini e Wanessa Camargo. Foto: Felipe Prado

“Acredito que a arte encurta os caminhos de comunicação e é capaz de atingir diretamente o coração e a alma das pessoas”, afirma Wanessa. “Ela faz com que a mensagem chegue com mais rapidez, leveza e sensibilidade às pessoas e é um instrumento fundamental para tratar de temas muitas vezes considerados complexos e difíceis no nosso cotidiano.” 

“É uma honra fazer parte desse esforço internacional para educar e desencadear diálogos sobre saúde sexual, autocuidado e cuidado dos outros. O retrato é uma colaboração sagrada de pessoas que desejam usar sua existência e notoriedade para projetar um mundo mais gentil, saudável e feliz. A gravata feita com camisinhas é a forma artística de ‘vestir’ a humanidade para instigar o diálogo e a educação”, declara Sean Black.  

 Fotos por Felipe Prado

Verified by MonsterInsights